quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O que quero ou penso querer

Escrevo para me isentar de alguma coisa ou de alguém. A verdade é que muito do que escrevo revela mais sobre mim do aque aquilo que falo, então de certa maneira tudo se torna um tanto translúcido. Minha fala é complicada demais aos ouvidos simplórios, soa líquida e às vezes um pouco ácida. Não estou acostumado a agitações e quando me agito sou tomado por enromes perturbações que me deixam amortecido, e me desconheço.
Tenho receio de perder minha companhia porque ela me agrada, no fundo tenho muita estima por aquilo que vivo por dentro, matéria indecifrável quantificada por cálculos absurdos. Me apego muito facilmente ao silêncio embora goste de falar e o faça um pouco freneticamente. Por isso, pergunto ao interlocutor o que ele acha, o que pensa, volta e meia recebo confirmações de que deveria ter me calado ou dito apenas alguns monossílabos, seria até melhor.
Estou precisando de férias, férias de muita coisa, intervalo de tempo preenchido por espaços aproveitáveis. Recuperaria minha sobriedade e meu olhar distante que enxerga tudo minuciosamente perto. Lavaria minha fúria, a que me faz querer atacar o outro e atingí-lo em seu âmago. Exploro sem medo essas cores incontroláveis porque durante meus momentos de profundidade apenas eu estou comigo, ninguém ousa partilhar de minha companhia, sou minha coisa inexplicável.
Portanto, desejo um porvir que me esclareça o que ainda não soa claro. A luminosidade não incomoda meus olhos, pelo contrário, ela me ajuda a enxergar quando preciso, quando não preciso apenas fecho meus olhos e sinto a claridade que me entranha. Portanto, desejo ser um híbrido de fênix e esfinge - continuo desafio, quase indecifrável, porém me regenero e consigo, com habilidade e paciência, descobrir quantos lados tem o meu prisma.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Por detrás dos panos alinhavados e sobrepostos

Peguei-me escrevendo cartas a alguém desconhecido. Na verdade, esse alguém eu conheço muito bem, mas tenho medo de identificá-lo porque isso comprometeria o pacto que firmei comigo mesmo. Se eu revelar a mim para quem estou escrevendo, minha mão congela instantanemente e a carta se apaga, sozinha e ligeira. Resultado disso seria não escrever a esse alguém, justamente quem eu quero muito que leia tudo aquilo que tenho a dizer. Porque saem escritos todos os sons que produzo, mesmo que não representados da forma mais adequada. Estão impregnados no papel não apenas sons, mas as muitas imagens pintadas a tinta de caneta ou máquina.
Quando escrevo sem nenhuma pista sou capaz de reconhecer que se aproxima uma enorme batalha. Não haverá sangue, nem mortos, nem feridos, apenas eu frente a um jogo de espelhos. Escondo o rosto entre as mão porque não quero ficar horrorizado. Quero apenas imagens de mim muito externas, que se reflitam nos espelhos e produzam cores cegantes e barulhos ensurdecedores. Dentro de meus olhos fechados procuro sentidos às coisas sem necessariamente ter a obrigação de assim fazê-lo. É aí que abro meus olhos e conheço o mundo, pois já não há mais espelhos e tão somente eu, porém luminosos espectros que são outros, outrem.
Se escrevo delimitando aquilo que quero, busco a companhia dos dicionários de várias línguas porque me dão coragem para mergulhar em letras espalhadas. Vejo verbetes e definições muito bem arrumados, com primor de orquestra, na página extensa e rasa. Raso que para mim há de se tornar profundo, fundura vertical de abismo que se encontra em significados. Pego minha tesoura, recorto tudo aquilo que posso, espalho sobre o papel branco e brinco de quebra-cabeças. A página despedaçada é metáfora de mim, que estou mutilado, e no entanto ficarei completo com o auxílio de pincel e cola.
De repente, a agulha da vitrola despedaça o disco, a música para, param os ventos que bagunçam as cortinas. Eu fiquei todo esse tempo imóvel, ali naquele espaço, rodeado de espaços vazios que se preenchem com sons de pequenas coisas. Coletei ruídos muito sensíveis, anotei tudo de forma organizada, agora ponho-me a decorar de uma vez só que é para economizar o tempo. Tempo: captei muito bem este som, batidinha aguda e quase surda, moradora dos recôncavos desconhecidos da cavidade auditiva. Ao se chocar contra mim, este som chamado tempo adentra as reentrâncias corporais e acelera a caminhada que se chama envelhecimento.
Se agora escrevo cartas a quem não conheço é porque careço de espectadores aos meus eventos que afetam toda uma realidade. Minha intenção não é alterar o curso das coisas, desviar os eixos das linhas que conduzem os fatos. O que eu quero é muito mais amplo do que isso, pois pretendo, talvez inconscientemente, modificar estruturas moleculares, de forma muito profunda - e quem sabe, então, quantificar o peso de cada um e a composição mais biótica que habita aquilo que chamamos de corpo.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dziewięćdziesięciokilkoletniemu

Quem vos escreve está em toda parte ao mesmo tempo, em todos os retratos, estampado com timidez nas costas do papel em branco. Quem vos escreve tem a aspereza da lixa encarregada de polir a matéria bruta. Nas horas de pânico, quem vos escreve é o que há dentro do tronco da árvore morta, quem vos escreve quando está em pânico é porque precisa dizer algo com muita urgência sem usar a verbalidade dos sons internos (tum-tuc-tum-tuc).
Quem vos escreve precisa de caminhos que não levam ao paraíso, mas que se perdem como que infinitamente por dentro de quem vos escreve. Quem vos escreve tem som de agressão instrumental, de cordas rompidas e atadas com nós. Quem vos escreve aprecia contagens exorbitantes e tem uma paixão muito secreta por números, sequências e circuitos - não reveladas porque quem vos escreve tem medo de perder-se em dado.
Se algum dia perguntarem sobre quem vos escreve, diga que há um bilhete em cima da cômoda ao lado do criado-mudo. Nesse bilhete, quem vos escreve vos escreveu que, por mais que se pergunte, não há resposta, e por mais que não se responda, mais há que se acrescentar ao que supostamente já está encerrado. Afinal, o que foi dito por quem voz escreve é pura propagação de sons que não se repetem e que percorrem caminhos curvilíneos, labirintos - imaginação.

A menina que enxerga com outros olhos ou Só se vê bem com o coração

Minhas pernas não conseguiam acompanhar o ritmo da corrida que em meu interior se estabelecia. O desencontro dos movimentos tornavam-me surda, a ponto de não ouvir mamãe gritar por mim do portão. Poderia eu perder mais algum dos meus sentidos?
O vento soprava como um fole que aviva a lareira. Era quase verão, a rua muito vazia, só minha, nem o cachorro latia. Eu queria abraçar o sol e suas brisas aquecidas, com tonalidades que jamais poderia imaginar. Dentro de minha cabeça de silêncios eu imagino todas as coisas possíveis com a intenção de entender o que são as imagens. Sonho com o que é impreciso, com as partes de meu corpo que por minhas mãos são conhecidas, sonho barulhos inteiros e entrecortados, sonho com a rua porque dela consigo o tato.
Quanto à minha corrida, sinto que sou apressada e preciso ganhar esta aposta. Há um milhão de eus que me empurram de volta ao portão, mas esse eu que é de fibra e matéria viva é mais forte que os outros, então sem conhecer os dentes eu sorrio. Sorrio e sinto que uma coisa doce vem à boca, é a quentura de fora com o frio de dentro, o frio da saliva aquosa - agora quase seca porque o vento bate. Engulo uma quantidade enorme de ar e percebo que sou o balão que flutua.
Ai, queria eu imaginar o que é o rosa, o amarelo, o laranja, mamãe disse que são cores de quentura. Minhas pernas queimam, eu inteira queimo, mas queimo em fogo brando porque é fogo de satisfação. Estremeço em cada parte pois sei que estou levitando, eu que apenas percebi o pássaro com as pontas dos dedos. Tenho asas agora, tenho plumas e penas e asas, sou toda levitação.
De volta ao solo, no mesmo percurso, um pouco já fatigada (porém sorridente), ensaio o próximo passo - só que alguém me puxa pelo braço: são as mãos de mamãe. Reconheço, por fim, que está acabando mais uma tarde de verão.
(cigarra canta)
Hora de entrar em casa.

sábado, 9 de outubro de 2010

Presente de si-para-si

Festejou-se o aniversário de um homem muito modesto. E apenas no final do banquete é que se percebeu que alguém não tinha sido convidado: o festejado.
Anton Tchekhov

Não me lembro de ter preparado nenhuma festa. Quando cheguei estava tudo armado e eu jamais soubera de qualquer comemoração. Disseram ser meus amigos, mas não os identifiquei em minha memória. Recebi abraços e apertos de mão, todos vinham falar comigo mecanicamente (como em um ensaio) e desejar felicidades; então resolvi esboçar no rosto um sorriso permanente, pálido e entreaberto. Sim, seria uma escapatória, já que esperavam meu aval para atacar a mesa.
Acredito que a comida era a aniversariante. Fizeram com que me sentasse próximo ao bolo, como se eu fosse um enfeite. Fiquei constrangido com certos olhares, pois alguns dos presentes já começavam a emitir sons estranhos e a roer os próprios dedos. Achei melhor inaugurar a comilança, fato que foi o estopim da festa. Não tinha música, não bateram palmas, não cantaram parabéns.
A sinfonia dura e áspera vinha das bocas que mastigavam e trituravam com voracidade. Uma balzaquiana gorda comia muitos docinhos, todos quase simultaneamente. Um rapaz aflito devorava pastéizinhos e seu barulho era de boi (agudo) no matadouro. Um jovem simpático, parecendo ser um desses aprendizes de escritório, filtrava o refrigerante em ritmo alucinado enquanto segurava um saquinho de pipoca. O destaque, porém, ficou com a mulher alta de sapatos alaranjados: ela segurava cachorros-quentes em suas mãos enquanto sorvia com canudos os refrigerantes de três copos. Ao mesmo tempo.
Considerei tudo muito frenético e intenso, e por um instante pensei estar vendo miragens. Abri e fechei meus olhos diversas vezes, no entanto o que eu via eram mesas postas virando farelo, pessoas que eu jamais vira antes celebrando agora a deglutição hipnótica e desenfreada, em uma festa que supostamente era para mim. Aquilo me deixou em pânico, e desejei com muita força que todos eles sumissem.
Não havia música, não bateram palmas, não cantaram parabéns. Levantei-me de onde estava, abri a porta da sala, fechei e abri os olhos como quem busca forças, as mesas virando farelo. Puxei pessoas pelo braço, empurrei muitas outras, derrubei pipocas no chão. Eu todo era um grito muito represado, minha voz sairia supersônica se eu ousasse articular alguma palavra. Empurrei todos para fora, provoquei indigestões múltiplas, eu que não havia digerido nenhuma daquelas presenças.
No final das contas, sala vazia, farelos, pratinhos, guardanapos, copos usados, balões murchando. As letras de papel diziam "feliz aniversário", e vê-las me deu tamanha cólera que eu corri para arrancá-las da parede. Os convidados já se foram, comigo estão apenas os presentes. Fiz um amontoado, joguei tudo no lixo. Peguei a escada do prédio, subi com uma pressa nunca antes vista em mim. Na cobertura, um vento muito frio que se repete anualmente, esses eu contabilizo muitíssimo bem. Sentei no parapeito, pernas pendendo no ar, braços fixos prevenindo uma queda.

Nesse instante, o vento me deseja toda a felicidade do mundo com um abraço. Gotinhas de orvalho trazidas pela brisa retiram-me as impurezas, e sinto como se no momento recebesse o mais valioso dos presentes: a capacidade, ano após ano, de tornar-me novo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Znajneprekryštalizovávateľnejšievajúcimi

Em um ato de completa distração, deixei que meu braço batesse no cristal mais adorável de minha estante. Não pude fazer nada, nem mesmo um gesto no momento, também não havia necessidade. Senti que estava amortecido pelo pânico, visto que o cristal estava ali, sublimado por todo o carpete. Só mais tarde fui perceber que cada pedacinho era uma letra que colei no alto deste texto; mando imediatamente pelo correio a um destinatário que só sendo feito de prismas por dentro pode decodificar o que quero dizer.

A propósito, o título significa "os mais anti-cristalizantes", em língua eslovaca.

Noir désir

Se eu não morasse naquele edifício, o tédio seria um de meus alicerces. Assumo imponente a postura de quem vive no último andar, pois sei que até mim apenas os corajosos irão se dirigir. Tenho no rosto uma expressão mastigada, um ar blasé que não me abandona. Já tentei me encontrar abandonado, mas em minha mente aparecem palavras que definem como estou agora, e escrevo porque penso em pular da janela para ver como caio lá embaixo. Sim, porque se me permitem, estudo a Física dos movimentos e analiso a velocidade média do corpo que se choca contra o cimento. Há probabilidade que eu quebre minhas pernas ao pular de pé, do contrário eu seria apenas a pressão que o ar exerce naturalmente sobre as coisas. Aqui, deste meu andar, apenas meu, exerço uma pressão magnânima sobre os transeuntes. Se atirar friamente um copo d'água, dificilmente obterão minha sentença de culpado.
É agora que entro pela sala e lá está ele, confortavelmente sentado em meu sofá antigo, porém conservado. Observa atentamente minha televisão não muito grande, na qual passa um filme. Meu papel de parede está se descolando, e muito chocado com essa constatação (à bout de souffle), arrumo um pretexto para alisar, abraçar as paredes e encostar-me a elas. Apoio-me como quem está de partida, prendo-as em mim como a recordação mais longínqua e importante. Ele, no entanto, é a estátua que eu não quero para decorar minha sala. Pego um chá, muitíssimo quente e verde, ardente abridor de narinas isentas, e sento-me no sofá ao lado dele. Somos dois estranhos, agora dois, no último andar do edifício de apartamentos. Já que estudo Física, talvez fosse interessante que eu o atirasse pela janela, a fim de ver como seria sua colisão com o solo. (Observo as forças da natureza e em minha mente maquínica projeto vetores que a mais capaz das máquinas não projetaria em partículas muito pequenas de segundos) Antes disso, pois, eu levitaria firmemente com meu chá, quente e verde, bonito.
Digo:
- Eu poderia abrir minha boca e dizer milhares de coisas. Porém, como estou cansado, tendo a falar o menos possível, degusto o sangue metálico das palavras mordidas. Contenho um fluxo de informações enorme, para que não me confundam com a máquina e tentem retirar-me do topo deste edifício de apartamentos.
- O que você pretende fazer a partir de agora? - rebate ele.
- Minha sincera vontade é arremessar você daqui, bem deste topo altíssimo de quase-Olimpo, mas acho que não posso. Já percebeu a força que eu faria ao levantar seu corpo? Só com isso já desmancharia, pois como vê, sou feito de areia. Esqueceram de pôr em mim uma liga de coisas sólidas, talvez porque isso me retiraria os movimentos - sem os quais não vivo.
- Então sou muito importante. Sou a palavra que faltava, o suspiro não dado e o compromisso inadiável.
Levanto despreocupadamente, vou à varanda, de lá o chamo. Ele vem ao meu encontro e, lado a lado, olhamos para a rua, onde pessoas são pontos e de onde se olha para cima sem jamais descobrir de onde veio a água. Após alguns minutos, recuo, ele não entende, e com a força mais repentina, eu o precipito de lá, parapeito abaixo, e imediatamente um sorriso genuíno brota em meu rosto de expressão mastigada. Entro, vou direto ao sofá, procuro o chá mas ele já não existe.
Interfonam para mim:
- Foi daí que caiu um corpo líquido? Porque há alguém muito indignado por se molhar quando não há chuva.
- Desculpe, - digo - acho que sem querer derrubei meu chá. Precisa de alguma ajuda?
- Acho que não, alguém já abriu um guarda-chuva.

Volto para a sala e termino de assistir ao filme.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Abrir o dicionário na página tal

exercícios de escrita

Feliz entrou o pai (branco feito sal) pela porta. Devotado, acreditava ter um carma: a asma. No aniversário do filho, comprou pente e bola, tudo com ajuda da nora. Como quem carrega uma coroa, deixou de ser o que sempre presenteia com rato de pano. 
...
Atravessar a porta poderia ser um fardo pesadíssimo para quem tem pulmões cansados e a vista curta. Logo ele, homem dos seus sessenta e poucos anos, aposentadoria modesta. Logo ele, que passava horas na fila do INPS, batendo papo e chorando os anos de serviço mal compensados. Pois estava, pente e bola na mão, defronte do filho, que olhava irrequieto e extasiado os objetos. Veja só, que agradável: agora tinha com que se pentear (e ficar mais bonito para a esposa) e se distrair (nos horários em que a felizarda estivesse ausente). Chega de trinta e poucos anos ganhando ratinhos de pelúcia (Mickeys Mouses e seus derivados), já estava mais do que na hora de um presente digno! Logo ele, filho tão atencioso, que desde a infância vivia com o pai e amava a esposa e os filhos ainda não tidos, merecia boa recompensa.
Só não sabia que, por trás da pelúcia, durante trinta e poucos anos, o pai fora duplo: balconista e operário em fábrica de brinquedos.

***

"Não consigo pescar, estou uma arara!", disse ele (nervoso) sobre o cardume fugidio que dançava pelo mar bravo, mar azul, cuja vista lembrava o mais amplo e múltiplo prisma. "Certas pessoas não conseguem enxergar as coisas boas", comentaram meus amigos já consternados.
...
Com tanta natureza em volta, ele tinha justamente que se deter nos peixes, os quais jamais cederiam às suas expectativas de fome. Sim, porque acabara a comida (e vara de pescar não tinha), a água já não existia e tudo secava. Ele e meus amigos, pensativos pelo horizonte, terra não vista. Todos perdidos, todos cor de âmbar, todos quase-partes do oceano: amiga X era a ponta do coral, amigo W um pólipo anêmico, amiga Q uma moreia exposta, e ele, ah, insistentemente a esponja bipartida. Eu aqui, com toda minha onisciência, posso dizer o que acontecerá. A mim foi concedida a visão periférica, ver para frente porém fixando o entorno. Portanto, sei que estão no naufrágio, sei que são quase-partes do oceano, sei que a fome chega e a sede aperta. Acalmem-se, amigos, está perto de se ver apenas água, até não mais findar. O barco afunda, e com ele finda esta narrativa.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Peguei a faca, cortei o soneto, caiu no chão, virou uma prosa

Eu poderia começar um texto de forma extremamente metafórica, mas não o farei. Optei pela coisa hermética porque com ela me dou muito bem, às vezes. Se me encontro aqui, hermético, tratarei de ser breve, pois minha luz está acabando e em mim soa um toque de recolher interno. Já arrumei todas as gavetas, fechei as portas dos armários, cerrei todas as reentrâncias do apartamento. Quando a gente vai se mudar acontece de querermos vedar todas as lembranças de nós em nosso antigo recinto, para o outro morador não nos tirar das paredes e do assoalho. É o que faço, com extrema paciência e sabedoria, porque venho aprendendo muito com o tempo e a pressa só me faz mal. Gosto muito de mastigar a comida pelo menos cem vezes, com leveza de pasto, porque ao chegar ao meu estômago, dela restarão apenas moléculas. Essas moléculas entrarão por dentro de mim fazendo fila indiana, eu que sou congestionado pelo ar que me sobe através das narinas. Há muito desaprendi a olhar o relógio devido à minha ânsia tremenda em saber quantas moscas faleciam em milésimos de segundo, quantas pessoas respiravam o mesmo ar e eram invadidas por moléculas ou partículas, vida microscópica que me deixava noites sem dormir tentando quantificá-la. Se agora estou aqui, coletando as palavras de que preciso para escrever, só consigo porque não vejo que o tempo passa. Ele inevitavelmente está correndo, embora eu tenha sonhado inúmeras vezes com sua parada, seu desejável estacionamento que me permitiria preservar pessoas, fotografar momentos, escrever poesias a quem de mim se afastasse. Não consegui fazer tudo isso, mas não me arrependo, já que agora posso falar muito melhor sobre as coisas. Adquiri uma isenção enorme, e de mim escapo como quem foge de um incêndio. Talvez eu arda por dentro, talvez seja frio como um deserto de gelo, não sei, preciso respeitar o toque de recolher. A lâmpada que me serve está queimando, tenho que terminar. Ouço a sirene, vocês não ouvem?, devem estar surdos, mas há um alarde tremendo que prenuncia: meu navio acabou de ancorar.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Anonimato

Tirou da bolsa um cigarro e logo depois um isqueiro. Acendeu o cigarro e colocou-o na boca, preenchida pelo batom escarlate de anteontem. Saíra de casa determinadíssima, porém um tanto cansada. Desde pequena cansava-se com facilidade, diziam-na que já nascera velha. Às vezes, nem uma gente muito velha tinha o cansaço plúmbeo dela, que andava arrasatada feito a fumaça que agora se desvencilhava dos lábios.
Sua bolsa preta era um pouco antiga. Estava gasta, sem um dos fechos, entreaberta. No corpo, um roto vestido preto de bolinhas brancas, velado em parte por um cardigã preto acinzentado de poeira. Sua pele também era acinzentada: talvez fosse o cigarro, talvez a velhice. Se agora estava sentada à beira de uma encosta é porque descobrira o tempo. Quantas voltas de ponteiro ela não havia contabilizado em suas andanças, ela agora ali esquecida, quase sólida como o cimento que revestia o piso.
O cigarro estava acabando, ele era sua ampulheta. Levantou-se silenciosamente, caminhou um pouco pela beirada, fez-se equilibrista enquanto o vento levantava um pouco o vestido, revelando pernas de mármore e forro descosturado. Ai, a moça cinza, muito antes tão branca, agora uma estátua salina quase petrificada. E pétrea, linda e misteriosa ela degusta o fim de seu cigarro, cuja fumaça negra enamora os brônquios.
Bateu um vento que a levou, leve feito papel. Falta dela não sentiram, por seu nome não chamaram. Sinto um cheiro de naftalina, vou para onde ela estava. Não acendo cigarro, respiro ar puro.
Aterraram aquilo tudo, no lugar fizeram uma praça. Nela há cimento das minhas próprias andanças.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Nota!

Certamente Janeiro é  o mês mais produtivo para mim. Aqui nessa terra costuma fazer calor, mas eu me coloco de uma maneira tal que ele até se esquece de passar por mim. Sim, sinto que esquenta, às vezes mais do que deveria. Só que a essa época do ano ainda não existo, porque vou brotar na estação vindoura. Deserto, sou teu oásis, brinda minha chegada com tempestades de areia. Estarei aqui em breve, dormirás embalado por histórias a partir de então.

Dorme e perde as pernas no sonho

Resolvi sair e caminhar um pouco. A tarde de chumbo não é mais densa que a poeira acumulada nas minhas juntas. Alguém disse que ficar em casa demais faria com que eu envelhecesse, e isso me tornaria obsoleto ao meu tempo.
Abri a janela, já meio emperrada, e de súbito um vento fortíssimo invadiu tudo, muito pleno e vigoroso. Acho que nunca respirei tanto; senti minhas narinas dilatadas, frescas, com aroma de nada, que é o céu perto do vigésimo andar do edifício onde me encontro, nesse apartamento isolado. O ar limpou meus pensamentos, fui vasculhado por moléculas que não reconheço e que a essa altura já teriam realizado trocas gasosas muito complexas. Na hora em que eu respirava freneticamente ainda de olhos fechados, estático, me veio à cabeça pular a janela, verificar se a brisa me levaria adiante, em um voo de pássaro sem rumo. Senti que em mim rangia uma sinfonia magnânima, atestando que estava em espaço e tempo determinados. (A sinfonia faz tum, tuc, tum, tu tu, tum, tum tuc, tuc.) Respirei sem esforço, os movimentos de inspiração e expiração ficaram perfeitamente involuntários, nesse momento eu poderia flutuar como uma bolha transparente e límpida, redutível a um simples estouro. Se sangue tinha, agora o ar preenchia veias, artérias e capilares, e eu me sentia anestesiado, leve; se meu destino fosse cair de um precipício eu cairia muito feliz. Tentei abrir os olhos, quase consegui, no entanto a única coisa que fiz foi subir no parapeito da janela, um pouco trôpego, ainda coberto por muito vento. Com um tato paupérrimo investiguei a região, mas meu pé se perdeu e o tufão me levou, levou para longe, onde sinto frio na barriga em uma queda vertiginosa.
Triiim! Abro meus olhos, o frio na barriga ainda me acompanha um pouco (sensação gelada de montanha russa), porém percebo estar sentado no leito. Tenho pernas, sangue, acredito que as trocas gasosas estão em perfeita harmonia. Examino o quarto, a janela está fechada, vedada por trincos e cortina. Levanto, chego perto, não ouso abrir. Vou me arrumar e sair de casa. Vida lá fora.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A primogênita ou A voz feminina pulsante mas muito suave e que sai com pequenas pancadinhas no peito ou Um corpo é o que se tem mas não se deseja

Uma vez disseram que eu era feia. Sim, feia. Permaneci interrogativa, até porque eu ainda não entendia a feiura. Quer dizer, eu entendia perfeitamente, até porque ela não existe. Não existe, pois, a beleza. Se sou bela, me dizem que apenas sou, gostam de mim e pronto, acaba-se aí a conversa. Se sou feia, insultam-me com facilidade, desgostam de mim e pronto, também não há conversa.
Sempre achei ridícula a hipótese de me observar nua no espelho. Nunca achei que fosse prudente ver o corpo, porque ele está em nós para não ser sentido. Se não o sinto, uma sensação de grande leveza me acomete, pois tenho ciência de que nada me fere. Se uma faca me rasga a pele, choro alucinadamente e sinto-me dilacerada, pois senti o corpo. Fiquei doente, senti calafrios, minhas juntas pareciam quebradas. Senhor, rezei a Deus, dá a cura para esse meu corpo! Experimentei, então, queimar-me. Ai!: o corpo. Ele está aí. Não posso ignorá-lo mais porque parte de mim é ele. Se todas as partes de mim se desfizessem, talvez tivéssemos a origem do universo - somos de poeira e átomos minusculamente unidos como os que formam as estrelas.
Se alguém disser que sou feia, não ficarei chateada. Eu sinto o corpo e sei que ele está aqui. Se sou linda, falam do meu rosto, minha face resplandece, mas relego ao corpo uma posição retardatária, porque só o sentirei quando tentarem corromper minha beleza: destruição da matéria. Quando alguém me fere, de verdade, não fere o que em mim habita. Fere o corpo, fere o átomo quantificado, a minha materialidade. Eu sou o texto que sempre se interfere, porque nunca será terminado. Não termino meus textos e os deixo sempre com as portas abertas para que eles se sintam, tão materialmente inconstantes quanto permitam todos os olhares.
Pousei os olhos sobre minhas mãos. Oh, Deus, estou ficando velha. Deixo para trás minha juventude, tenha eu sido linda ou feia, e agora visto um manto senil muito confortável. Contaram meus anos, 983, ou quantos você queira me dar, e me percebo mundana. Nessa posição, de quem dorme um sono muito pesado, ficarei até encerrarem os anos que me dão. Eu, sempre feia, sinto-me a perdiz livre e branca que mergulha em um vazio de abismo. 
* * *
Se me deixarem, se me quiserem, eu estou sempre aqui, neste mesmo endereço. Na minha casa tenho flores, eu sou uma delas, sempre a mesma, é só o tempo que passa. Sirvo chá, tenho biscoitos, guloseimas e os bem-te-vis comem em minha janela. Sei que o silêncio é devastador aqui, e aterriso branda com sons etéreos. Chama-me luz, ilumina teu corpo com o que sou, e verás que o tem. Beija a face do morto e dele se despede, porque estou aqui, na janela, e de você me despeço.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Megszentségteleníthetetlen

Tenho pânico da página em branco. Tenho pânico de viajar com você e ficar em silêncio. Sei que sou feito de puro silêncio, mas não quero deixar também de dizer. Se um bloco me dessem, se caneta me dessem, eu deixaria tudo escrito, minuciosamente registrado. Porque assim você não ouviria minha voz e eu falaria tudo o que tenho para falar. O som é poluição, eu me incomodo com o barulho, nem ao menos sua voz é agradável. Mas se viajo com você, preciso que me digas quem és. Como não te conheço preciso saber quem você é e porque está aqui. Se não estabelecemos um contrato, não viajamos juntos. E se não viajamos juntos, eu não digo. E cada fibra do meu aparelho fonador se esgota, morre em pequenos pedaços.
Eu tenho muita coisa para falar, no entanto preciso de alguém que me ouça. Sei ouvir e ouço pacientemente, ouço a concha que amplifica a onda, a formiga que tritura uma folha, a folha que balança ao vento. Até quando o tempo passa eu ouço, porque de ouvir a gente nunca se cansa. Morrer é ouvir o som do silêncio, o acúmulo dos silêncios de toda uma vida. Quando deixo de falar me puno, acumulo sentenças perfeitamente estruturadas. Elas saem feias quando as digo, porque meu aparelho fonador já morreu um pouquinho. Então pego caneta, papel, venho até aqui antes que meus dedos também morram. Não venho lamentar, chorar, me desculpar. Venho dizer, venho escrever. Se aqui estou é porque vivo, vivo em uma intensidade solar e aguda, como a planta que brota. Brotam palavras, brotam ventos outros, e logo rejuvenesço muitos anos.

* A palavra que deu origem ao título da postagem existe. Vem do húngaro/ magyar, e quer dizer "que não pode ser profanado, dessacralizado".

domingo, 20 de junho de 2010

Skylla, Scylla ou Cila, a ninfa que virou monstro

Eu só queria saber navegar nessa jangada. Essa que me sacode, no leva-e-traz imperfeito das ondas. (Mas há muita perfeição nas águas sibilantes.) A onda vai, vem, arrasta consigo pequenos cristais que são multiplamente brilhosos e batem nas cristas espumadas. O mar é a noiva incansável, com sua grinalda eterna, sempre à espera de um marido. O mar tem muitos maridos, maridos infinitos, que com muita ânsia tiram-lhe os filhos. Filhos, meus filhos, os filhos dos teus filhos, os que há muito nadam pelas dorsais oceânicas. A baleia canta, o harpão resvala, a baleia silencia, o mar se cala: a morte é o silêncio de todos nós. Morrer é ficar bem quietinho para sempre, é talvez a reflexão eterna. Quando a baleia morre, milhões de peixinhos, plânctons, fitoplânctons e moreias rezam, pedem clemência. Também peço clemência por aqueles que ferem a noiva, por aqueles que tiram dela seus últimos filhos. A noiva sangra, porém sangra azul eterno.
Minha jangada parece sólida, mas ainda não sei navegá-la. Talvez eu não seja navegável. Talvez nós não sejamos navegáveis. Todos temos certa escuridão abissal, onde habitam seres desconhecidos de qualquer ciência. Nem nós conseguimos avistá-los, pois nossos olhos não enxergam o suficiente. Às vezes, dificilmente enxergamos as superfícies. Quem sabe seja por isso que nossas jangadas afundam com a menor das ondas (pulsantes), quem sabe seja por isso que estamos insistentemente presos à margem. Com toda certeza a margem me conforta, me conforta saber que estou a salvo, que não corro o risco de desbravar mares sombrios, encontrar quimeras marinhas, glaciares cortantes ou escuridões com perfeição de cegueira. Preso pela margem, fico aqui e só, esperando que bata a onda na pedra, que resvale em mim algum pingo salgado para que eu me lembre, finalmente, o quão profundos e arredios podem ser os mares que estão em nós. Preciso, pois, de uma nova jangada.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Reiterando

Eu queria que o oco das coisas fosse música. Simples assim: p o e s i a.

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O Rascunho das Metrópoles

Uma hora da tarde. O ônibus estava parado no engarrafamento, e o estudante pretendia chegar em casa. Todos os dias muita gente pretende chegar em casa, mas não sabe se realmente retornará. Quando saem, de manhã cedo, rezam para seus deuses em busca de alguma proteção. A cidade é a selva perigosa, o delírio inventivo, cimento, asfato e tijolo, a asfixia. Quem não se sente asfixiado com a fumaça tragada e expelida pelos carburadores insandecidos?
Pois o estudante estava agora asfixiado. Os automóveis ao lado do ônibus produziam nuvens negras, e as janelas do coletivo imediatamente se fechavam, na tentativa de preservar o ar que ali se respirava. Nos acostamentos da via expressa, vendedores ambulantes estavam inertes a todo o caos provocado pelo barulho das buzinas, pela fumaça venenosa, pelas velocidades sempre crescentes. Eles aproveitavam o engarrafamento para vender seus produtos, ou pelo menos tentar. As janelas, quase invariavelmente fechadas, abriam-se vez ou outra para trocar refrigerantes, águas e biscoitinhos por algumas moedas.
Mais à frente, uma equipe da administração pública era vista como a causa do engarrafamento. Homens recapiavam a estrada, sob sol a pino, soltando matéria sintética preta e imprensando-a com rolo mecânico. O motorista do ônibus, já impaciente, tentava em vão algumas manobras para escapar do congestionamento. Tem-se muita pressa nos dias de hoje, uma pressa descomedida. O relógio é o inimigo fatal, pois se fulano não estiver às três no trabalho, está na rua. Todos nós passamos por tantas ruas em nossa vida...
O estudante estava um pouco impaciente, olhava para o relógio e pela janela do ônibus. Sua visão não era muito agradável. Barracos, casas que mais pareciam escombros, animais magros pastando no lixo, catadores fazendo o mesmo, e no gramado cercado, crianças uniformizadas jogavam futebol. Ah, pelo menos isso, pensou o estudante. Pelo menos alguma esperança tornava-se visível naquele mar de regularidades que se espalhava pelo acostamento: o mar de tijolos dos barracos compunham a favela.
No acostamento, um funcionário da obra de asfaltamento da via fumava um cigarro. Parecia desdenhar da utilidade de tudo aquilo, como quem dissesse "Daqui a pouco fica tudo esburacado de novo". Enquanto fumava, dois meninos pularam a barreira do acostamento, vindos da favela. O estudante pensou que isso era um absurdo, pois se não fosse a obra aqueles jovens estariam em apuros. Deteve-se em perceber que os dois meninos foram até o homem, cada um com um cigarro, pedir para que ele acendesse os seus. O homem, de prontidão, o fez. Munidos de um papel enrolado, "sabe-se lá com o quê dentro", pensou o estudante, os meninos aproximaram-se do ônibus e, em tom de escárnio, disseram: "Aí só tem playboy, esse é o ônibus dos playboy, mané!".
Gelado e quase imóvel, o estudante ficou bastante espantado com aquilo. Além da fala, os meninos deram batidas na lateral do ônibus, na tentativa de acordar um rapaz que cochilava encostado ao vidro, e falavam "Dorme não, playboy, dorme não!". O estudante não virou para trás a fim de conferir a reação do rapaz. Com a mão no fecho da janela, pensou em fechá-la, mas em sua cabeça passaram milhões de coisas: e se jogassem uma pedra ou cuspissem?
O ônibus finalmente andou mais um pouco, e saiu da zona de asfaltamento. Os meninos, agora mais para trás, pulavam a barreira do acostamento de volta à favela, e pareciam estar satisfeitos com o que fizeram. O estudante recuperara-se do "susto" (não sabia, ainda, a reação do rapaz do ônibus), alertado pelo odor que misturava esterco e papel queimado. A favela tornava-se mais ampla, porém mais distante. A linha do trem passava por ela, dura e cortante, mas ao lado dela, a carrocinha do catador de papel fazia seu trabalho diário.
No caminho, o estudante ficou pensando o que motivara aqueles meninos a fazerem o que fizeram. Não assaltaram, não agrediram fisicamente, mas atacaram, proferiram palavras com raiva e pungência. Nós, passageiros daquele ônibus, éramos alvos daquele sentimento. Nós, passageiros daquele ônibus, estávamos deixando de lado aquele cartaz, para cruzar uma ponte, um túnel e chegar à nossa linda cidade. A cidade só é linda de um lado, se você virá-la do outro ela é feia, feita de tijolo, barro, tapumes e zinco. Na via por onde o ônibus passara, ladeada de favelas, tentavam cobrir com acrílico e ferro a falta de planejamento, ou a tentativa de muitas pessoas de não ficarem desabrigadas e morarem perto do trabalho. Sim, porque se o fulano perder o trem e chegar atrasado, está na rua.
A caminho de casa, o estudante percebera que, no momento do "ataque" dos meninos na via expressa, aquilo incomodara mais do que o congestionamento e o cansaço da viagem. Incomodara porque, naquele instante, os passageiros do ônibus eram a materialização do sistema, a origem das desigualdades. Nós nos tornamos patrões, e eles sentiam-se nossos operários.
Na porta de casa, o estudante concentrou-se em outros pensamentos: "Tenho uma agenda a cumprir, preciso fazer tal coisa da faculdade para amanhã, é super importante". E cruzou o portão do prédio, que já fora lavado pela manhã.
O estudante era eu.

Quando o caco de vidro torna-se o maior dos cristais

X. saiu de casa às cinco. Tinha que estar no trabalho às sete. Só que X. não sabia que aquele dia seria mágico. O ônibus estava no ponto, o ar cheirava a café e biscoitos, e seu estômago, como sempre, vazio. Vazios eram também os pensamentos de X.: ela só sabia que precisava de um dinheiro no fim do mês porque as crianças já tinham aprendido a dizer "fome" e pediam leite e roupas. Era isso o que se podia fazer com o salário mínimo daquele país.
X. vivia como dava, honestamente. A honestidade era sua maior virtude, pensava encostada ao vidro do ônibus, enquanto os olhos rodavam como se quisessem absorver a imagem do café com pão assim como sua língua fazia com o alimento sorvido. Era sôfrega, mas se tivesse algumas moedas... olhou para as mãos e não viu nenhuma. Abriu a bolsa, vasculhou (embora estivesse vazia), nada. Desceu do ônibus, sem entender porque o fizera. Na cabeça, café com pão. Caminhou em direção à casa, meio hipnotizada, distante.
Abriu a porta, e o susto fez o menino mais velho largar a colcha. Se assustara, porque a essa hora a mãe deveria estar no meio do caminho.
- Coloca uma roupa, menino, e acorde os outros.
O mais velho, imbuído de sua infinita responsabilidade, fez orgulhosamente o papel da mãe, nos dias em que essa ficava sem trabalho. Os outros, sonolentos, esfregavam os olhos secos pelo frio da madrugada. Já (quase) prontos, passaram pela inspeção da mãe: "A gente é pobre mas é honesto", frisou X. E saíram de casa, respirando ar novo. A conta de luz não estava mais sobre o móvel da sala.
Andaram pouco, e logo estavam na estação de ônibus. Aquele já partira há muito, mas o que importava? "Café com pão", dizia X. a si mesma em seu interior magro. Ao chegarem em frente à banquinha, a vendedora disparou:
- É com manteiga, queijo ou presunto, freguesa? O café é puro, pingadinho, dois dedos de açúcar ou adoçante?
Isso atravessou X. como a última esperança de sua vida. Aquela refeição seria abençoada. Pegou o dinheiro de dentro da bolsa, majestosa, e entregou à vendedora: "Hoje podemos tudo!". Sorriu para si mesma, a vendedora em posse do dinheiro fazendo os cálculos. Que fabuloso, cada um comeria seu pão, com o recheio predileto, e teria direito a um copo grande de café com leite, pingadinho, dois dedos de açúcar. Pronto, virara festa. Farelos, gotinhas, línguas e sabores. As crianças acordaram definitivamente.
O término era a despedida. Mas o estômago estava devidamente forrado. X. pensou, "Quanta imprudência! Quem agora pagaria aquela bendita luz?". Nada mais importava. As crianças sorriam, e já começavam uma quase corrida de pega-pega. "O que importa?", pensou consigo mesma. "Essa felicidade nossa, conquistada sem o bate-estaca do dia-a-dia, ah, essa nem o escuro oprime. Nós temos vida, temos a nós mesmos".
Saíram dali, não se sabe para onde. X. andava e ria sozinha, sandália rala arrasatando pelo chão. Estômago forrado, coração aquecido, libertação. Aquele dia havia sido, inegavelmente, mágico.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O que legam à velhice

Acordei muito tarde ontem. Eram quase onze da manhã, e um sol desbotado driblava a janela entreaberta. A luz solar batia no chão do pátio, fazendo exalar o desagradável odor de xixi de gato. O lençol estava velho, um pouquinho rasgado, e o cobertor de lã fora parar no chão. Durante o sono a gente nunca sabe onde vai chegar, e se por acaso vai chegar a algum lugar. O sono é a morte passageira, e a morte é o sono para sempre.
É nesse momento que surge o chinelo, pronto para ser calçado. Chinelos não são muito felizes e suas ambições são bastante terrenas: nunca sair da terra. A terra batida que leva o trabalhador, o asfalto dos automóveis. A borracha tem sua persistência de martelo, golpeando o chão pelo mundo afora. O mundo é tão grande feito a cabeça de um alfinete. Quando espetado pode se espatifar em milhões de pedacinhos, basta a mão para fazê-lo.
Andei até a porta e encontrei o pátio vazio. Caminhei até seu centro, procurando talvez um vértice. Eu, união de muitos vértices, conjunto de arestas meticulosamente desordenadas, cuja estrutura tornara-se frágil com o peso dos anos. Eu, com meus 29 anos, sentindo peso de outros 70 anos não vividos. Chega uma hora em que se cansa da própria face, porque o espelho não é mais capaz de reinventá-la. Eu, com meus 29 anos, nunca fora tão velho e tão distante.
No centro do pátio, vazio descomunal e silêncio oco. Barulho só do coração: tic-tac, relógio do tempo. Sentei-me, com certa dificuldade, e recebi no rosto um pouco de luz e calor. Queria acender um cigarro, ler um livro, telefonar, escrever, rezar, rabiscar paredes, morrer após alguma coisa intensamente vivida. Mas não. O que me sobrava ali? As horas mal digeridas. Eu, a mariposa velha, peluda e cinzenta, na flor dos meus 29 anos.
Levantei-me um pouco mais novo. Na porta do quarto, a parenta distante e o bolo de milho. Momento de conversar e rever o mundo, para fazer passar um pouco mais esse tempo que nunca passa. Eu e minhas 24 horas...
***
Talvez o que eu queira dizer não seja necessariamente importante. Mas, se me dão a palavra, acho que posso dizer livremente. Digo porque me permitem verbalizar a vida, as coisas. Os relatos que produzo não são sempre um retrato de mim, mas de tudo que gira ao redor. Às vezes, as coisas giram tão perto de nós que seria tolice ignorá-las. Outras vezes, passamos os olhos por elas e seguimos adiante. Seguir adiante, sim, pois há caminho. Há muito caminho a ser percorrido. E continuo minhas andanças, tentativas, acertos e erros. Até o dia em que a caneta bater ponto final.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

'Conversa reveladora' ou 'A formiga teve sentido no mundo depois de morta a chineladas'

Z: - Poxa, que droga, acabei de morder minha língua.
F: - Coisa de quem fala demais.
Z: - Antes falar do que manter retesada toda a agonia que surge de repente.
F: - Dramalhão existencial, reconheço...
Z: - Reconhece nada. Tudo porque acha que é completo. Cheio de pessoas importantes, rituais de aparências, fés, credos, opiniões, valores. De que vale essa tralha se por dentro há ruína?
F: - Quanta fraqueza em palavras mal digeridas...
Z: - O que eu não consigo digerir é essa superestimação das coisas, esses eventos tão mínimos que se tornam homéricos, essa tentativa de querer ser feliz a todo custo. Como se a felicidade fosse comprável e a companhia de qualquer um se tornasse agradável, pois qualquer pessoa se torna a mais querida. Eu mordo minha língua sim, porque se eu não fosse falar tudo isso talvez dormisse mal todas as noites. Eu, ao contrário de você(s), não fico achando que cinco minutos são saudade, que uma mínima distância é um abismo, que uma conversa para ser boa tem que ser efusiva. Privilegio os silêncios espessos, as coisas inanimadas, o inanimado que existe em mim. A formiga que morre é a melancolia do dia, a água que goteja na pia é o poema da tarde. Às vezes o que eu não digo pode ser pior do que o que eu falaria, pois no íntimo da mente habitam densos mistérios. Eu não sei dar valor demais a coisas que não necessariamente merecem, ou que são muito pequenas para serem ditas eternas. Eterno para mim é muito, é uníssono, não é a convivência cotidiana e tampouco a presença. Quem sabe se a ausência pode ser eterna?
F: - ...
Z: - Aposto que você planejou essa reação indiferente a tudo que eu disse.
F: - De fato.
Z: - Se não quiser morder a língua, não morda, mas aprenda a falar. Gesticule, verbalize, cometa uma verborragia. Antes de ficar exaltando qualquer coisa, exalte cada hora ruminando detestáveis minutos de tédio ou mergulhe em seu próprio vácuo.
F: - Aceita um chá?
Z: - Aceito.
F: - Como vai o trabalho?
Z: - Sabe aquele seu castelo de cartas? Construído com afinco, mantido para que qualquer um chegasse e dissesse "Oh, minha nossa, quanta aplicação e quanto trabalho árduo", do qual você se orgulha de ter feito? Eu o derrubei.
F: - !
Z: - Derrubei com um sopro despretensioso, só para ver se estava firme. Mas foi de propósito, foi sim, porque eu sabia que a sua reação seria essa: a de quem fala "cadê tudo aquilo que eu pensava estimar?". Pois é, está aí, bem abaixo de seus pés, abaixo dessa cara sempre e falsamente amigável.
Não é preciso deixar que alguém sopre nossos castelos de cartas quando nós sabemos fazê-lo. As epifanias que vivemos são momentos de si para si, o ser para dentro. Ser para os outros não tem graça. Montar e desmontar o personagem não funciona, não é admirável.
Agora preciso ir. Mas aprenda uma coisa: reflita mais sobre a solidão e o silêncio. São muito necessários. Não se afaste das pessoas, pelo contrário, selecione umas poucas, bem poucas mesmo, porém que durem. Durem como o seu castelo e como você próprio.

"Fique de vez em quando sozinho, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa." C.L.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Parecia

Essa última postagem não foi a primeira do ano, mas deveria ter sido. Dia 18, céus, envelhecemos.

Nem sempre tudo é tão singelo quanto parece

Estou chafurdado em um processo enfadonho de criação. Penso, não escrevo. Desescrevo com a borracha algumas linhas outrora postas, e minha paciência torra lenta, macia e aguda, barulhinho de quando se acorda até o dormir.
Deus queira que essa criação seja passageira, que a minha rima nasça ligeira, não aguento esperar. Essa dorzinha que matuta em minha cabeça, espero que desapareça, pois quero gritar. Eu grito sempre, grito meu egocentrismo, essa coisa da primeira pessoa e do eu, que finge um conflitinho medíocre.
A verdade é que eu sempre falo as mesmas coisas com palavras diferentes, devo ter dito. Só que o vento leva, o papel queima, a fumaça encobre. Estou encoberto de mim mesmo, e por isso me afasto: fingimento poético sim, daqui para frente.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Cartinha

Querido ano que chega,
Eu não poderia deixar de dar as boas-vindas escrevendo nem que fosse uma linha. Tudo bem, sabemos que uma hora você vai ter de ir embora, aliás tudo vai embora (em boa hora?) um dia. Mas é que me deu um aperto sabendo que os papéis ficaram abandonados e a tinta das canetas secou. Por isso é que resolvi escrever e renovar tudo em sua homenagem. Lápis, papel, caneta, borracha, tudo. Aliás, passei borracha em muita coisa por aqui, inclusive no irmão que já se foi. Só mais uma coisinha, não me demoro: traga, por favor, um pouco mais de sensatez para todas as gentes. Esse mundão vasto em que a gente vive precisa se renovar, e conto com sua presença para que isso aconteça.
Encerro aqui minha cartinha,
de todo o coração,
W.