terça-feira, 21 de setembro de 2010

Noir désir

Se eu não morasse naquele edifício, o tédio seria um de meus alicerces. Assumo imponente a postura de quem vive no último andar, pois sei que até mim apenas os corajosos irão se dirigir. Tenho no rosto uma expressão mastigada, um ar blasé que não me abandona. Já tentei me encontrar abandonado, mas em minha mente aparecem palavras que definem como estou agora, e escrevo porque penso em pular da janela para ver como caio lá embaixo. Sim, porque se me permitem, estudo a Física dos movimentos e analiso a velocidade média do corpo que se choca contra o cimento. Há probabilidade que eu quebre minhas pernas ao pular de pé, do contrário eu seria apenas a pressão que o ar exerce naturalmente sobre as coisas. Aqui, deste meu andar, apenas meu, exerço uma pressão magnânima sobre os transeuntes. Se atirar friamente um copo d'água, dificilmente obterão minha sentença de culpado.
É agora que entro pela sala e lá está ele, confortavelmente sentado em meu sofá antigo, porém conservado. Observa atentamente minha televisão não muito grande, na qual passa um filme. Meu papel de parede está se descolando, e muito chocado com essa constatação (à bout de souffle), arrumo um pretexto para alisar, abraçar as paredes e encostar-me a elas. Apoio-me como quem está de partida, prendo-as em mim como a recordação mais longínqua e importante. Ele, no entanto, é a estátua que eu não quero para decorar minha sala. Pego um chá, muitíssimo quente e verde, ardente abridor de narinas isentas, e sento-me no sofá ao lado dele. Somos dois estranhos, agora dois, no último andar do edifício de apartamentos. Já que estudo Física, talvez fosse interessante que eu o atirasse pela janela, a fim de ver como seria sua colisão com o solo. (Observo as forças da natureza e em minha mente maquínica projeto vetores que a mais capaz das máquinas não projetaria em partículas muito pequenas de segundos) Antes disso, pois, eu levitaria firmemente com meu chá, quente e verde, bonito.
Digo:
- Eu poderia abrir minha boca e dizer milhares de coisas. Porém, como estou cansado, tendo a falar o menos possível, degusto o sangue metálico das palavras mordidas. Contenho um fluxo de informações enorme, para que não me confundam com a máquina e tentem retirar-me do topo deste edifício de apartamentos.
- O que você pretende fazer a partir de agora? - rebate ele.
- Minha sincera vontade é arremessar você daqui, bem deste topo altíssimo de quase-Olimpo, mas acho que não posso. Já percebeu a força que eu faria ao levantar seu corpo? Só com isso já desmancharia, pois como vê, sou feito de areia. Esqueceram de pôr em mim uma liga de coisas sólidas, talvez porque isso me retiraria os movimentos - sem os quais não vivo.
- Então sou muito importante. Sou a palavra que faltava, o suspiro não dado e o compromisso inadiável.
Levanto despreocupadamente, vou à varanda, de lá o chamo. Ele vem ao meu encontro e, lado a lado, olhamos para a rua, onde pessoas são pontos e de onde se olha para cima sem jamais descobrir de onde veio a água. Após alguns minutos, recuo, ele não entende, e com a força mais repentina, eu o precipito de lá, parapeito abaixo, e imediatamente um sorriso genuíno brota em meu rosto de expressão mastigada. Entro, vou direto ao sofá, procuro o chá mas ele já não existe.
Interfonam para mim:
- Foi daí que caiu um corpo líquido? Porque há alguém muito indignado por se molhar quando não há chuva.
- Desculpe, - digo - acho que sem querer derrubei meu chá. Precisa de alguma ajuda?
- Acho que não, alguém já abriu um guarda-chuva.

Volto para a sala e termino de assistir ao filme.

Um comentário:

Maira M. M. disse...

Adorei! Muito legal essa mutação de estados físicos dos personagens-objetos. A nota tá alta.