sexta-feira, 23 de abril de 2010

O que legam à velhice

Acordei muito tarde ontem. Eram quase onze da manhã, e um sol desbotado driblava a janela entreaberta. A luz solar batia no chão do pátio, fazendo exalar o desagradável odor de xixi de gato. O lençol estava velho, um pouquinho rasgado, e o cobertor de lã fora parar no chão. Durante o sono a gente nunca sabe onde vai chegar, e se por acaso vai chegar a algum lugar. O sono é a morte passageira, e a morte é o sono para sempre.
É nesse momento que surge o chinelo, pronto para ser calçado. Chinelos não são muito felizes e suas ambições são bastante terrenas: nunca sair da terra. A terra batida que leva o trabalhador, o asfalto dos automóveis. A borracha tem sua persistência de martelo, golpeando o chão pelo mundo afora. O mundo é tão grande feito a cabeça de um alfinete. Quando espetado pode se espatifar em milhões de pedacinhos, basta a mão para fazê-lo.
Andei até a porta e encontrei o pátio vazio. Caminhei até seu centro, procurando talvez um vértice. Eu, união de muitos vértices, conjunto de arestas meticulosamente desordenadas, cuja estrutura tornara-se frágil com o peso dos anos. Eu, com meus 29 anos, sentindo peso de outros 70 anos não vividos. Chega uma hora em que se cansa da própria face, porque o espelho não é mais capaz de reinventá-la. Eu, com meus 29 anos, nunca fora tão velho e tão distante.
No centro do pátio, vazio descomunal e silêncio oco. Barulho só do coração: tic-tac, relógio do tempo. Sentei-me, com certa dificuldade, e recebi no rosto um pouco de luz e calor. Queria acender um cigarro, ler um livro, telefonar, escrever, rezar, rabiscar paredes, morrer após alguma coisa intensamente vivida. Mas não. O que me sobrava ali? As horas mal digeridas. Eu, a mariposa velha, peluda e cinzenta, na flor dos meus 29 anos.
Levantei-me um pouco mais novo. Na porta do quarto, a parenta distante e o bolo de milho. Momento de conversar e rever o mundo, para fazer passar um pouco mais esse tempo que nunca passa. Eu e minhas 24 horas...
***
Talvez o que eu queira dizer não seja necessariamente importante. Mas, se me dão a palavra, acho que posso dizer livremente. Digo porque me permitem verbalizar a vida, as coisas. Os relatos que produzo não são sempre um retrato de mim, mas de tudo que gira ao redor. Às vezes, as coisas giram tão perto de nós que seria tolice ignorá-las. Outras vezes, passamos os olhos por elas e seguimos adiante. Seguir adiante, sim, pois há caminho. Há muito caminho a ser percorrido. E continuo minhas andanças, tentativas, acertos e erros. Até o dia em que a caneta bater ponto final.