quinta-feira, 29 de julho de 2010

A primogênita ou A voz feminina pulsante mas muito suave e que sai com pequenas pancadinhas no peito ou Um corpo é o que se tem mas não se deseja

Uma vez disseram que eu era feia. Sim, feia. Permaneci interrogativa, até porque eu ainda não entendia a feiura. Quer dizer, eu entendia perfeitamente, até porque ela não existe. Não existe, pois, a beleza. Se sou bela, me dizem que apenas sou, gostam de mim e pronto, acaba-se aí a conversa. Se sou feia, insultam-me com facilidade, desgostam de mim e pronto, também não há conversa.
Sempre achei ridícula a hipótese de me observar nua no espelho. Nunca achei que fosse prudente ver o corpo, porque ele está em nós para não ser sentido. Se não o sinto, uma sensação de grande leveza me acomete, pois tenho ciência de que nada me fere. Se uma faca me rasga a pele, choro alucinadamente e sinto-me dilacerada, pois senti o corpo. Fiquei doente, senti calafrios, minhas juntas pareciam quebradas. Senhor, rezei a Deus, dá a cura para esse meu corpo! Experimentei, então, queimar-me. Ai!: o corpo. Ele está aí. Não posso ignorá-lo mais porque parte de mim é ele. Se todas as partes de mim se desfizessem, talvez tivéssemos a origem do universo - somos de poeira e átomos minusculamente unidos como os que formam as estrelas.
Se alguém disser que sou feia, não ficarei chateada. Eu sinto o corpo e sei que ele está aqui. Se sou linda, falam do meu rosto, minha face resplandece, mas relego ao corpo uma posição retardatária, porque só o sentirei quando tentarem corromper minha beleza: destruição da matéria. Quando alguém me fere, de verdade, não fere o que em mim habita. Fere o corpo, fere o átomo quantificado, a minha materialidade. Eu sou o texto que sempre se interfere, porque nunca será terminado. Não termino meus textos e os deixo sempre com as portas abertas para que eles se sintam, tão materialmente inconstantes quanto permitam todos os olhares.
Pousei os olhos sobre minhas mãos. Oh, Deus, estou ficando velha. Deixo para trás minha juventude, tenha eu sido linda ou feia, e agora visto um manto senil muito confortável. Contaram meus anos, 983, ou quantos você queira me dar, e me percebo mundana. Nessa posição, de quem dorme um sono muito pesado, ficarei até encerrarem os anos que me dão. Eu, sempre feia, sinto-me a perdiz livre e branca que mergulha em um vazio de abismo. 
* * *
Se me deixarem, se me quiserem, eu estou sempre aqui, neste mesmo endereço. Na minha casa tenho flores, eu sou uma delas, sempre a mesma, é só o tempo que passa. Sirvo chá, tenho biscoitos, guloseimas e os bem-te-vis comem em minha janela. Sei que o silêncio é devastador aqui, e aterriso branda com sons etéreos. Chama-me luz, ilumina teu corpo com o que sou, e verás que o tem. Beija a face do morto e dele se despede, porque estou aqui, na janela, e de você me despeço.