domingo, 20 de fevereiro de 2011

O retrato da degustação

Quando não há nada a dizer, eu me calo. Quando muitas vezes preciso dizer alguma coisa, também me calo. Se me observam com ar de reprovação e raiva, permaneço calado. Sentando no banco, nada e ninguém por perto, apenas eu calado - silêncio comigo. Na conversa com os outros, participantes da festa verbal, estou quieto, acho que quase não me mexo. Não olho para o relógio porque os ponteiros fazem barulho, então escondo com as mãos o objeto, mas fico calado e sem qualquer expressão. Percorro os cômodos da casa, lindos e frios, primavera desflorida no cone sul, sempre tendo o maior cuidado para não macular o silêncio. Quem morava comigo está ausente, não sei para onde foram, porém imagino a beleza desconhecida e por elas respiro profundamente em homenagem singela.

Não me faça nenhuma pergunta, meu rosto já diz tudo o que eu gostaria de dizer. Nos cômodos da casa, as coisas choram baixinho em sinal de reverência, lembrando os que outrora ali estiveram. As perguntas podem me ofender e eu sou sempre assim, de uma quietude própria da agulha na superfície. Por isso, não me pergunte nada. Passe por mim e acene, apenas exista, ou mesmo desista. Acho que sou a materialização da mudança, se agora estou assim posso estar diferente depois. Conservo minha mudez como bem precioso, fico muito bem nesses retratos de papel, deve ser porque eles não falam.

Mas eu grito.

De dor pela agulha que afunda.
De raiva.
De mais raiva por não compreender certas coisas.
De desespero por não poder solucionar tudo.
De raiva, novamente, por não aceitar a perseguição.
De medo, quando vislumbro a ameaça.
De medo também por perder o que se estima.
De alegria, caso o vento sopre em meu rosto um afago.
De horror, pois acabei de reconhecer a presença de um bicho.
De tédio, quando o grito se reverte em não-som que não se propaga.

E quando eu grito não me reconhecem, então acontece uma perturbação avassaladora. Tudo que está calmo se agita, no mar as ondas se precipitam contra o litoral, no céu as gaivotas voam em V prenunciando a ausência de chuva, na outra metade do planeta uma bomba está caindo sobre casas,  ou uma família sobrevive com um menos de um dólar. Fico perplexo com a pseudo-consciência, com quem quer discursar sobre qualquer coisa e tenta ter um comportamento à parte. Assim eu grito novamente, grito uma agressão muda e enojada, um murro gelado e duro, me transformo na coisa glacial - assim ignoro, muito profundamente.

Estou aprendendo a falar, saber o que dizer e para quem dizer. Minha paz é muda, mas somente ela não basta, ela não é suficiente, não significa nada. Enquanto eu apenas disser, nada será resolvido. Quero apenas uma visão aguçada e um faro supersônico, para poder enxergar também no escuro e percorrer todo tipo de caminho.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O corpo do bicho

Procurei instintivamente por uma saída. Estávamos a sós, eu e o bicho, as paredes brancas muito resolutas, hermeticamente anguladas em noventa graus. O sol que entrava pela janela refletia toda a brancura do mundo, e por instantes tornei-me cego. Usei o tato para me locomover, eu bicho gente que busca sobrevivência. Esse lugar inóspito é um quarto, e quando alcanço o sapato dele me armo e vou em direção ao bicho. Não sei se voa, se anda, ou se rasteja para de mim se defender. Olhos fechados, eu me defendo, desfecho um golpe, certeiro e fatal: som de exoesqueleto esmagado em pureza branca.

Não consigo sair do lugar, meu braço permanece imóvel e inerte segurando a parede, como se a qualquer momento ela pudesse cair. Deus, tenha de mim muita compaixão, o que acabo de cometer agora é um assassínio. O barulho da pancada vibrou reverberante, senti em cada fibra um estalo de convicção: eu matei o bicho. Eu o matei com precisão, dolosamente, ataque misericordioso. Peço então misericórdia, pois no momento em que matava o bicho senti percorrer meu interior uma sensação maravilhosa. Poder indescritível, alívio, satisfação. Estou me livrando de alguém, perdoe-me - do outro lado do mundo nascem milhões de bichos, secretamente interrompo a cronologia em nascer-crescer-envelhecer-morrer.

Puna-me, puna-me, regozijo-me com a morte, a morte daquele que nem ao menos conheço. Quando cometo o crime transfiro para o bicho uma grande raiva sentida por mim mesmo. Já perscrutei o vazio do branco e ingressei pelo desconhecido. Já me senti limitado e desnecessário, senti raiva, escrevi bilhetes sem destinatário pelo simples prazer de guardar na gaveta e me surpreender. Pensei que se soltasse a parede talvez ela caísse sobre mim e o cadáver do bicho comigo se fundisse. Então sentiria nojo sob escombros, e uma luz assustadoramente se acenderia revelando a fusão imprópria das matérias desencontradas. Sinto nojo absoluto, para falar a verdade o que sinto é uma repugnância extrassensorial. Porque agora estilhaçados pedaços do bicho se espalham no cosmos, e sei que se soltar de fato a parede pode bater algum vento e sobre mim lançar fragmentos de corpo. Arrepio-me por inteiro com essa hipótese, mas no fundo me encanto com meu instinto predatório.

Quero forças para largar a parede, que seguro através de um braço que não é mais meu. Será que o bicho está de mim tomando posse, a ponto de fazer-me vítima de sua aproximação indesejada? Quando desferi o golpe ondas de calmaria me inundaram e senti vontade de levitar. Agora nenhum outro bicho me tiranizaria, sou invulnerável. Somos: eu e o sapato. Penso na possibilidade de beijar o sapato, a arma, de manter sua existência salvaguardada em meu canto de adoração. Tento recobrar a consciência, vejo que estimo uma toda glória que logicamente mereço. Eu matei o bicho, piedade de mim que me vanglorio.

Vou largar a parede. Quero momentos de surdez para recuperar o trauma que é o barulho de um morto-quase-morrendo. Quero também ouvidos limpos, a satisfação da morte benéfica: som dilacerante do bicho, que agora é ex-bicho falecido na superfície. Gradualmente me afasto, ainda horrorizado, ainda anestesiado pelo torpor da missão cumprida. Olhos fechados, medo do branco, e se houver a vingança dos outros bichos? Acaso este se mantém no mesmo lugar, resignado?

Não sei. No fundo não quero saber. Tateio um pouco o chão, sinto maciez, respiro contentamento de ar puro em direção aos brônquios. Sento, olhos ainda fechados, corpo pesado gravitacionalmente exposto. Desconheço o tempo, tudo acontece de forma translúcida e etérea. Estou deitado, rosto virado para a parede oposta à cena do crime. Deitado, em um quarto empedrado e branco, dentro do apartamento no prédio de uns altos andares. Tranquilamente, às três da tarde, mês de janeiro – auge do verão: corpo de um bicho pousado sobre a cama.