segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O corpo do bicho

Procurei instintivamente por uma saída. Estávamos a sós, eu e o bicho, as paredes brancas muito resolutas, hermeticamente anguladas em noventa graus. O sol que entrava pela janela refletia toda a brancura do mundo, e por instantes tornei-me cego. Usei o tato para me locomover, eu bicho gente que busca sobrevivência. Esse lugar inóspito é um quarto, e quando alcanço o sapato dele me armo e vou em direção ao bicho. Não sei se voa, se anda, ou se rasteja para de mim se defender. Olhos fechados, eu me defendo, desfecho um golpe, certeiro e fatal: som de exoesqueleto esmagado em pureza branca.

Não consigo sair do lugar, meu braço permanece imóvel e inerte segurando a parede, como se a qualquer momento ela pudesse cair. Deus, tenha de mim muita compaixão, o que acabo de cometer agora é um assassínio. O barulho da pancada vibrou reverberante, senti em cada fibra um estalo de convicção: eu matei o bicho. Eu o matei com precisão, dolosamente, ataque misericordioso. Peço então misericórdia, pois no momento em que matava o bicho senti percorrer meu interior uma sensação maravilhosa. Poder indescritível, alívio, satisfação. Estou me livrando de alguém, perdoe-me - do outro lado do mundo nascem milhões de bichos, secretamente interrompo a cronologia em nascer-crescer-envelhecer-morrer.

Puna-me, puna-me, regozijo-me com a morte, a morte daquele que nem ao menos conheço. Quando cometo o crime transfiro para o bicho uma grande raiva sentida por mim mesmo. Já perscrutei o vazio do branco e ingressei pelo desconhecido. Já me senti limitado e desnecessário, senti raiva, escrevi bilhetes sem destinatário pelo simples prazer de guardar na gaveta e me surpreender. Pensei que se soltasse a parede talvez ela caísse sobre mim e o cadáver do bicho comigo se fundisse. Então sentiria nojo sob escombros, e uma luz assustadoramente se acenderia revelando a fusão imprópria das matérias desencontradas. Sinto nojo absoluto, para falar a verdade o que sinto é uma repugnância extrassensorial. Porque agora estilhaçados pedaços do bicho se espalham no cosmos, e sei que se soltar de fato a parede pode bater algum vento e sobre mim lançar fragmentos de corpo. Arrepio-me por inteiro com essa hipótese, mas no fundo me encanto com meu instinto predatório.

Quero forças para largar a parede, que seguro através de um braço que não é mais meu. Será que o bicho está de mim tomando posse, a ponto de fazer-me vítima de sua aproximação indesejada? Quando desferi o golpe ondas de calmaria me inundaram e senti vontade de levitar. Agora nenhum outro bicho me tiranizaria, sou invulnerável. Somos: eu e o sapato. Penso na possibilidade de beijar o sapato, a arma, de manter sua existência salvaguardada em meu canto de adoração. Tento recobrar a consciência, vejo que estimo uma toda glória que logicamente mereço. Eu matei o bicho, piedade de mim que me vanglorio.

Vou largar a parede. Quero momentos de surdez para recuperar o trauma que é o barulho de um morto-quase-morrendo. Quero também ouvidos limpos, a satisfação da morte benéfica: som dilacerante do bicho, que agora é ex-bicho falecido na superfície. Gradualmente me afasto, ainda horrorizado, ainda anestesiado pelo torpor da missão cumprida. Olhos fechados, medo do branco, e se houver a vingança dos outros bichos? Acaso este se mantém no mesmo lugar, resignado?

Não sei. No fundo não quero saber. Tateio um pouco o chão, sinto maciez, respiro contentamento de ar puro em direção aos brônquios. Sento, olhos ainda fechados, corpo pesado gravitacionalmente exposto. Desconheço o tempo, tudo acontece de forma translúcida e etérea. Estou deitado, rosto virado para a parede oposta à cena do crime. Deitado, em um quarto empedrado e branco, dentro do apartamento no prédio de uns altos andares. Tranquilamente, às três da tarde, mês de janeiro – auge do verão: corpo de um bicho pousado sobre a cama.