sábado, 27 de dezembro de 2008

E chove lá fora

L. não sai de casa porque está chovendo. Não sai mesmo é por preguiça, mas não quer admitir. A chuva veio bem a calhar: no Domingo as ruas ficam mais vazias, não tem algodão-doce na praça, as crianças não saem de casa, as avezinhas longínqüas não chegam para pegar milho. Ainda mais com essa chuva.
Então é que decide fazer um desenho. Procura papel, lápis e algumas tintas. Senta-se no chão, mas fica parado pensando no que vai fazer - é chato desperdiçar papel, tinta e tempo. Após um tempo, decide pintar um bosque.
Frondoso, belo e explêndido, assim que ele vai ser. Com animaizinhos, um céu de nuvens, um solzinho modesto e ameno. Terá árvores de vários tipos, frutas comestíveis, borboletas majestosas e formiguinhas trabalhadoras. A senhora joaninha vem depois, em uma dessas folhinhas de verde vivo que nutrem o capim de beleza.
Um riacho acolherá os pés do caminhantes, isso, é claro, se L. fizer pessoas, porque agora era senhor. Senhor do verde-claro, do amarelo-ouro, do carmim e de mais nãoseioquê. E assim vai a tarde: lápis espalhados, papéis espalhados, tintas abertas. A mãe chamando, não há resposta - L. só ouve os sons da imaginação.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Ampulheta

[Gravando.]

Preciso me reiventar. Meus quadros já não são mais bonitos, minha dança é a dos movimentos enferrujados, minhas palavras apagam-se naturalmente e meus olhos já não brilham como antes. Minhas flores já não abrem mais, minhas roupas estão desbotadas e meu ar não se renova. Há muito que convivo com o dilema do envelhecimento. Já não conto mais com tão boa memória, ou com amigos de longa data que me ajudem a lembrar de tudo. A xícara favorita está velha, um pouco quebrada, o cachecol mais bonito quase devorado pelas traças, e minhas mãos enrugadinhas, pequeninas e arqueadas. Não vou muito bem das pernas mesmo. Mas são suficientes para me dirigir ao cesto e pegar o pão, beber o chá, arrumar o que ainda resta.
Porém, ao menor dos esforços sinto que todas essas horas, dias, meses e outras unidades de medida de tempo foram muito úteis. Sim, e continuarão a ser, enquanto eu durar.

[Fim de gravação.]

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

31 anos

"Dá-me a tua mão desconhecida que a vida está me doendo e eu não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas."

Clarice Lispector. 09/12/1977 §

Algum conto temático, porém fora de época

W. estava indecisa, não sabia o que ia comprar.
Acabou o chá,
Acabou a bolacha,
Mas ainda tinha bastante açúcar.
O que se podia fazer com muito açúcar hoje em dia? Pensou em um bolo, ou bolinhos de chuva, mas cadê a farinha? Não, também tinha acabado a farinha. Pensou novamente: "- Para quê serve farinha, não queria mesmo."
O sofá já se configurava duro, e o gato espichava uma lingüinha magra, meio que em um bocejo de cansaço e preguiça. A parede estava desbotada, W. há muito não renovava a cor. Tinta também não se encontrava, coisa rara. Raro mesmo era ver alguma coisa muito nova naquele lugar. W. estava cansada, indecisa e pensativa. Achava consigo mesma que nunca havia pensado tanto.
Foi então que teve a idéia de comprar um pinheirinho (louca, não tinha bolacha nem chá). Estava frio, precisava de chá e bolacha, mas com o troco dava para comprar chocolate e uma garrafinha de leite. Colocou o cachecol, a touca, calçou as luvas e saiu.
Em seu regresso, trouxe consigo o pinheirinho, o chocolate e o leite. Mal conseguia enxergar o caminho por onde andava, porém conseguiu chegar em casa sem danificar nada.
Instalou o pinheirinho:
Sem enfeite,
Sem brilho,
Sem nada.
Colocou o leite do gato, fechou as janelas, pôs o restante de lenha na lareira (e olha que ainda deu um bom fogo), preparou a cama com lençóis e colchas (mesmo que ralos), esquentou o chocolate. A cadeira já não balançava mais, contudo ligou o rádio, sentou-se nela e tomou chocolate.

25 de Dezembro.