terça-feira, 7 de setembro de 2010

Peguei a faca, cortei o soneto, caiu no chão, virou uma prosa

Eu poderia começar um texto de forma extremamente metafórica, mas não o farei. Optei pela coisa hermética porque com ela me dou muito bem, às vezes. Se me encontro aqui, hermético, tratarei de ser breve, pois minha luz está acabando e em mim soa um toque de recolher interno. Já arrumei todas as gavetas, fechei as portas dos armários, cerrei todas as reentrâncias do apartamento. Quando a gente vai se mudar acontece de querermos vedar todas as lembranças de nós em nosso antigo recinto, para o outro morador não nos tirar das paredes e do assoalho. É o que faço, com extrema paciência e sabedoria, porque venho aprendendo muito com o tempo e a pressa só me faz mal. Gosto muito de mastigar a comida pelo menos cem vezes, com leveza de pasto, porque ao chegar ao meu estômago, dela restarão apenas moléculas. Essas moléculas entrarão por dentro de mim fazendo fila indiana, eu que sou congestionado pelo ar que me sobe através das narinas. Há muito desaprendi a olhar o relógio devido à minha ânsia tremenda em saber quantas moscas faleciam em milésimos de segundo, quantas pessoas respiravam o mesmo ar e eram invadidas por moléculas ou partículas, vida microscópica que me deixava noites sem dormir tentando quantificá-la. Se agora estou aqui, coletando as palavras de que preciso para escrever, só consigo porque não vejo que o tempo passa. Ele inevitavelmente está correndo, embora eu tenha sonhado inúmeras vezes com sua parada, seu desejável estacionamento que me permitiria preservar pessoas, fotografar momentos, escrever poesias a quem de mim se afastasse. Não consegui fazer tudo isso, mas não me arrependo, já que agora posso falar muito melhor sobre as coisas. Adquiri uma isenção enorme, e de mim escapo como quem foge de um incêndio. Talvez eu arda por dentro, talvez seja frio como um deserto de gelo, não sei, preciso respeitar o toque de recolher. A lâmpada que me serve está queimando, tenho que terminar. Ouço a sirene, vocês não ouvem?, devem estar surdos, mas há um alarde tremendo que prenuncia: meu navio acabou de ancorar.

2 comentários:

Maira M. M. disse...

Mastigar a comida 100 vezes é técnica japonesa para atrasar a morte. Que texto lindo :]

Si. disse...

Gosto do seu estilo de escrever. E aprecio seus titulos. Gostei muito desse texto! Valeu!