quinta-feira, 16 de setembro de 2010

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exercícios de escrita

Feliz entrou o pai (branco feito sal) pela porta. Devotado, acreditava ter um carma: a asma. No aniversário do filho, comprou pente e bola, tudo com ajuda da nora. Como quem carrega uma coroa, deixou de ser o que sempre presenteia com rato de pano. 
...
Atravessar a porta poderia ser um fardo pesadíssimo para quem tem pulmões cansados e a vista curta. Logo ele, homem dos seus sessenta e poucos anos, aposentadoria modesta. Logo ele, que passava horas na fila do INPS, batendo papo e chorando os anos de serviço mal compensados. Pois estava, pente e bola na mão, defronte do filho, que olhava irrequieto e extasiado os objetos. Veja só, que agradável: agora tinha com que se pentear (e ficar mais bonito para a esposa) e se distrair (nos horários em que a felizarda estivesse ausente). Chega de trinta e poucos anos ganhando ratinhos de pelúcia (Mickeys Mouses e seus derivados), já estava mais do que na hora de um presente digno! Logo ele, filho tão atencioso, que desde a infância vivia com o pai e amava a esposa e os filhos ainda não tidos, merecia boa recompensa.
Só não sabia que, por trás da pelúcia, durante trinta e poucos anos, o pai fora duplo: balconista e operário em fábrica de brinquedos.

***

"Não consigo pescar, estou uma arara!", disse ele (nervoso) sobre o cardume fugidio que dançava pelo mar bravo, mar azul, cuja vista lembrava o mais amplo e múltiplo prisma. "Certas pessoas não conseguem enxergar as coisas boas", comentaram meus amigos já consternados.
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Com tanta natureza em volta, ele tinha justamente que se deter nos peixes, os quais jamais cederiam às suas expectativas de fome. Sim, porque acabara a comida (e vara de pescar não tinha), a água já não existia e tudo secava. Ele e meus amigos, pensativos pelo horizonte, terra não vista. Todos perdidos, todos cor de âmbar, todos quase-partes do oceano: amiga X era a ponta do coral, amigo W um pólipo anêmico, amiga Q uma moreia exposta, e ele, ah, insistentemente a esponja bipartida. Eu aqui, com toda minha onisciência, posso dizer o que acontecerá. A mim foi concedida a visão periférica, ver para frente porém fixando o entorno. Portanto, sei que estão no naufrágio, sei que são quase-partes do oceano, sei que a fome chega e a sede aperta. Acalmem-se, amigos, está perto de se ver apenas água, até não mais findar. O barco afunda, e com ele finda esta narrativa.

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