Minhas pernas não conseguiam acompanhar o ritmo da corrida que em meu interior se estabelecia. O desencontro dos movimentos tornavam-me surda, a ponto de não ouvir mamãe gritar por mim do portão. Poderia eu perder mais algum dos meus sentidos?
O vento soprava como um fole que aviva a lareira. Era quase verão, a rua muito vazia, só minha, nem o cachorro latia. Eu queria abraçar o sol e suas brisas aquecidas, com tonalidades que jamais poderia imaginar. Dentro de minha cabeça de silêncios eu imagino todas as coisas possíveis com a intenção de entender o que são as imagens. Sonho com o que é impreciso, com as partes de meu corpo que por minhas mãos são conhecidas, sonho barulhos inteiros e entrecortados, sonho com a rua porque dela consigo o tato.
Quanto à minha corrida, sinto que sou apressada e preciso ganhar esta aposta. Há um milhão de eus que me empurram de volta ao portão, mas esse eu que é de fibra e matéria viva é mais forte que os outros, então sem conhecer os dentes eu sorrio. Sorrio e sinto que uma coisa doce vem à boca, é a quentura de fora com o frio de dentro, o frio da saliva aquosa - agora quase seca porque o vento bate. Engulo uma quantidade enorme de ar e percebo que sou o balão que flutua.
Ai, queria eu imaginar o que é o rosa, o amarelo, o laranja, mamãe disse que são cores de quentura. Minhas pernas queimam, eu inteira queimo, mas queimo em fogo brando porque é fogo de satisfação. Estremeço em cada parte pois sei que estou levitando, eu que apenas percebi o pássaro com as pontas dos dedos. Tenho asas agora, tenho plumas e penas e asas, sou toda levitação.
De volta ao solo, no mesmo percurso, um pouco já fatigada (porém sorridente), ensaio o próximo passo - só que alguém me puxa pelo braço: são as mãos de mamãe. Reconheço, por fim, que está acabando mais uma tarde de verão.
(cigarra canta)
Hora de entrar em casa.
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