terça-feira, 4 de maio de 2010

Quando o caco de vidro torna-se o maior dos cristais

X. saiu de casa às cinco. Tinha que estar no trabalho às sete. Só que X. não sabia que aquele dia seria mágico. O ônibus estava no ponto, o ar cheirava a café e biscoitos, e seu estômago, como sempre, vazio. Vazios eram também os pensamentos de X.: ela só sabia que precisava de um dinheiro no fim do mês porque as crianças já tinham aprendido a dizer "fome" e pediam leite e roupas. Era isso o que se podia fazer com o salário mínimo daquele país.
X. vivia como dava, honestamente. A honestidade era sua maior virtude, pensava encostada ao vidro do ônibus, enquanto os olhos rodavam como se quisessem absorver a imagem do café com pão assim como sua língua fazia com o alimento sorvido. Era sôfrega, mas se tivesse algumas moedas... olhou para as mãos e não viu nenhuma. Abriu a bolsa, vasculhou (embora estivesse vazia), nada. Desceu do ônibus, sem entender porque o fizera. Na cabeça, café com pão. Caminhou em direção à casa, meio hipnotizada, distante.
Abriu a porta, e o susto fez o menino mais velho largar a colcha. Se assustara, porque a essa hora a mãe deveria estar no meio do caminho.
- Coloca uma roupa, menino, e acorde os outros.
O mais velho, imbuído de sua infinita responsabilidade, fez orgulhosamente o papel da mãe, nos dias em que essa ficava sem trabalho. Os outros, sonolentos, esfregavam os olhos secos pelo frio da madrugada. Já (quase) prontos, passaram pela inspeção da mãe: "A gente é pobre mas é honesto", frisou X. E saíram de casa, respirando ar novo. A conta de luz não estava mais sobre o móvel da sala.
Andaram pouco, e logo estavam na estação de ônibus. Aquele já partira há muito, mas o que importava? "Café com pão", dizia X. a si mesma em seu interior magro. Ao chegarem em frente à banquinha, a vendedora disparou:
- É com manteiga, queijo ou presunto, freguesa? O café é puro, pingadinho, dois dedos de açúcar ou adoçante?
Isso atravessou X. como a última esperança de sua vida. Aquela refeição seria abençoada. Pegou o dinheiro de dentro da bolsa, majestosa, e entregou à vendedora: "Hoje podemos tudo!". Sorriu para si mesma, a vendedora em posse do dinheiro fazendo os cálculos. Que fabuloso, cada um comeria seu pão, com o recheio predileto, e teria direito a um copo grande de café com leite, pingadinho, dois dedos de açúcar. Pronto, virara festa. Farelos, gotinhas, línguas e sabores. As crianças acordaram definitivamente.
O término era a despedida. Mas o estômago estava devidamente forrado. X. pensou, "Quanta imprudência! Quem agora pagaria aquela bendita luz?". Nada mais importava. As crianças sorriam, e já começavam uma quase corrida de pega-pega. "O que importa?", pensou consigo mesma. "Essa felicidade nossa, conquistada sem o bate-estaca do dia-a-dia, ah, essa nem o escuro oprime. Nós temos vida, temos a nós mesmos".
Saíram dali, não se sabe para onde. X. andava e ria sozinha, sandália rala arrasatando pelo chão. Estômago forrado, coração aquecido, libertação. Aquele dia havia sido, inegavelmente, mágico.

Um comentário:

Jéssica disse...

ah, que lindo!!