sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

E foi embora

A menina pegou o caderno de folhas brancas e pôs-se a desenhar. Com aqueles lápis que havia ganhado de aniversário, parecia poder fazer desenhos mágicos, combinar cores, variar formas. Aquilo era para ela um júbilo, atividade obrigatória do fim de tarde. Quando o pai chegasse, e a mãe finalmente servisse o jantar, ela pararia, retornado somente no dia seguinte.
Mas teve um dia que foi diferente. O pai demorava, a mãe preocupada tinha um olho na porta e outro na janela. Um ventinho balançava a chave na porta e ela achava que era o marido. Engano. A menina ainda estava perdida nas cores, agora descobrira que podia fazer aquarelas (Oh, belos lápis).
Até que quebrou uma ponta. Logo a ponta do lápis mais bonito, aquele azul quase verde que sempre colore o mar. A menina ficou perplexa com o que acontecera. Como? Não se sabe, mas ela chorava. E a mãe veio da cozinha, enxugando as mãos no avental e perguntando o que tinha accntecido. E quase aos soluços, dissera que o lápis havia ficado sem ponta. A mãe a consolou e voltou para o fogão.
Nada do marido. A ponta quebrada, pouco barulho em casa, logo ele que chegava fazendo alvoroço. A menina parada, a mãe com luva e avental prestes a tirar a comida do fogo. Nas horas em que se está ocupado, há sempre uma vizinha fofoqueira que atrapalha. A mãe, com pouca paciência, ouviu a velha, que antes rabugenta e maledicente, agora trazia expressão de angústia:
- Ô dona Fulana, seu marido morreu.
Panela queimada, lápis sem ponta, mulher viúva. Com os lápis, a menina pintava as cores da despedida.
"Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada."
Hilda Hilst

Um comentário:

Anônimo disse...

Bonito, né?

*_*

=*