Peguei-me escrevendo cartas a alguém desconhecido. Na verdade, esse alguém eu conheço muito bem, mas tenho medo de identificá-lo porque isso comprometeria o pacto que firmei comigo mesmo. Se eu revelar a mim para quem estou escrevendo, minha mão congela instantanemente e a carta se apaga, sozinha e ligeira. Resultado disso seria não escrever a esse alguém, justamente quem eu quero muito que leia tudo aquilo que tenho a dizer. Porque saem escritos todos os sons que produzo, mesmo que não representados da forma mais adequada. Estão impregnados no papel não apenas sons, mas as muitas imagens pintadas a tinta de caneta ou máquina.
Quando escrevo sem nenhuma pista sou capaz de reconhecer que se aproxima uma enorme batalha. Não haverá sangue, nem mortos, nem feridos, apenas eu frente a um jogo de espelhos. Escondo o rosto entre as mão porque não quero ficar horrorizado. Quero apenas imagens de mim muito externas, que se reflitam nos espelhos e produzam cores cegantes e barulhos ensurdecedores. Dentro de meus olhos fechados procuro sentidos às coisas sem necessariamente ter a obrigação de assim fazê-lo. É aí que abro meus olhos e conheço o mundo, pois já não há mais espelhos e tão somente eu, porém luminosos espectros que são outros, outrem.
Se escrevo delimitando aquilo que quero, busco a companhia dos dicionários de várias línguas porque me dão coragem para mergulhar em letras espalhadas. Vejo verbetes e definições muito bem arrumados, com primor de orquestra, na página extensa e rasa. Raso que para mim há de se tornar profundo, fundura vertical de abismo que se encontra em significados. Pego minha tesoura, recorto tudo aquilo que posso, espalho sobre o papel branco e brinco de quebra-cabeças. A página despedaçada é metáfora de mim, que estou mutilado, e no entanto ficarei completo com o auxílio de pincel e cola.
De repente, a agulha da vitrola despedaça o disco, a música para, param os ventos que bagunçam as cortinas. Eu fiquei todo esse tempo imóvel, ali naquele espaço, rodeado de espaços vazios que se preenchem com sons de pequenas coisas. Coletei ruídos muito sensíveis, anotei tudo de forma organizada, agora ponho-me a decorar de uma vez só que é para economizar o tempo. Tempo: captei muito bem este som, batidinha aguda e quase surda, moradora dos recôncavos desconhecidos da cavidade auditiva. Ao se chocar contra mim, este som chamado tempo adentra as reentrâncias corporais e acelera a caminhada que se chama envelhecimento.
Se agora escrevo cartas a quem não conheço é porque careço de espectadores aos meus eventos que afetam toda uma realidade. Minha intenção não é alterar o curso das coisas, desviar os eixos das linhas que conduzem os fatos. O que eu quero é muito mais amplo do que isso, pois pretendo, talvez inconscientemente, modificar estruturas moleculares, de forma muito profunda - e quem sabe, então, quantificar o peso de cada um e a composição mais biótica que habita aquilo que chamamos de corpo.