segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Por detrás dos panos alinhavados e sobrepostos

Peguei-me escrevendo cartas a alguém desconhecido. Na verdade, esse alguém eu conheço muito bem, mas tenho medo de identificá-lo porque isso comprometeria o pacto que firmei comigo mesmo. Se eu revelar a mim para quem estou escrevendo, minha mão congela instantanemente e a carta se apaga, sozinha e ligeira. Resultado disso seria não escrever a esse alguém, justamente quem eu quero muito que leia tudo aquilo que tenho a dizer. Porque saem escritos todos os sons que produzo, mesmo que não representados da forma mais adequada. Estão impregnados no papel não apenas sons, mas as muitas imagens pintadas a tinta de caneta ou máquina.
Quando escrevo sem nenhuma pista sou capaz de reconhecer que se aproxima uma enorme batalha. Não haverá sangue, nem mortos, nem feridos, apenas eu frente a um jogo de espelhos. Escondo o rosto entre as mão porque não quero ficar horrorizado. Quero apenas imagens de mim muito externas, que se reflitam nos espelhos e produzam cores cegantes e barulhos ensurdecedores. Dentro de meus olhos fechados procuro sentidos às coisas sem necessariamente ter a obrigação de assim fazê-lo. É aí que abro meus olhos e conheço o mundo, pois já não há mais espelhos e tão somente eu, porém luminosos espectros que são outros, outrem.
Se escrevo delimitando aquilo que quero, busco a companhia dos dicionários de várias línguas porque me dão coragem para mergulhar em letras espalhadas. Vejo verbetes e definições muito bem arrumados, com primor de orquestra, na página extensa e rasa. Raso que para mim há de se tornar profundo, fundura vertical de abismo que se encontra em significados. Pego minha tesoura, recorto tudo aquilo que posso, espalho sobre o papel branco e brinco de quebra-cabeças. A página despedaçada é metáfora de mim, que estou mutilado, e no entanto ficarei completo com o auxílio de pincel e cola.
De repente, a agulha da vitrola despedaça o disco, a música para, param os ventos que bagunçam as cortinas. Eu fiquei todo esse tempo imóvel, ali naquele espaço, rodeado de espaços vazios que se preenchem com sons de pequenas coisas. Coletei ruídos muito sensíveis, anotei tudo de forma organizada, agora ponho-me a decorar de uma vez só que é para economizar o tempo. Tempo: captei muito bem este som, batidinha aguda e quase surda, moradora dos recôncavos desconhecidos da cavidade auditiva. Ao se chocar contra mim, este som chamado tempo adentra as reentrâncias corporais e acelera a caminhada que se chama envelhecimento.
Se agora escrevo cartas a quem não conheço é porque careço de espectadores aos meus eventos que afetam toda uma realidade. Minha intenção não é alterar o curso das coisas, desviar os eixos das linhas que conduzem os fatos. O que eu quero é muito mais amplo do que isso, pois pretendo, talvez inconscientemente, modificar estruturas moleculares, de forma muito profunda - e quem sabe, então, quantificar o peso de cada um e a composição mais biótica que habita aquilo que chamamos de corpo.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dziewięćdziesięciokilkoletniemu

Quem vos escreve está em toda parte ao mesmo tempo, em todos os retratos, estampado com timidez nas costas do papel em branco. Quem vos escreve tem a aspereza da lixa encarregada de polir a matéria bruta. Nas horas de pânico, quem vos escreve é o que há dentro do tronco da árvore morta, quem vos escreve quando está em pânico é porque precisa dizer algo com muita urgência sem usar a verbalidade dos sons internos (tum-tuc-tum-tuc).
Quem vos escreve precisa de caminhos que não levam ao paraíso, mas que se perdem como que infinitamente por dentro de quem vos escreve. Quem vos escreve tem som de agressão instrumental, de cordas rompidas e atadas com nós. Quem vos escreve aprecia contagens exorbitantes e tem uma paixão muito secreta por números, sequências e circuitos - não reveladas porque quem vos escreve tem medo de perder-se em dado.
Se algum dia perguntarem sobre quem vos escreve, diga que há um bilhete em cima da cômoda ao lado do criado-mudo. Nesse bilhete, quem vos escreve vos escreveu que, por mais que se pergunte, não há resposta, e por mais que não se responda, mais há que se acrescentar ao que supostamente já está encerrado. Afinal, o que foi dito por quem voz escreve é pura propagação de sons que não se repetem e que percorrem caminhos curvilíneos, labirintos - imaginação.

A menina que enxerga com outros olhos ou Só se vê bem com o coração

Minhas pernas não conseguiam acompanhar o ritmo da corrida que em meu interior se estabelecia. O desencontro dos movimentos tornavam-me surda, a ponto de não ouvir mamãe gritar por mim do portão. Poderia eu perder mais algum dos meus sentidos?
O vento soprava como um fole que aviva a lareira. Era quase verão, a rua muito vazia, só minha, nem o cachorro latia. Eu queria abraçar o sol e suas brisas aquecidas, com tonalidades que jamais poderia imaginar. Dentro de minha cabeça de silêncios eu imagino todas as coisas possíveis com a intenção de entender o que são as imagens. Sonho com o que é impreciso, com as partes de meu corpo que por minhas mãos são conhecidas, sonho barulhos inteiros e entrecortados, sonho com a rua porque dela consigo o tato.
Quanto à minha corrida, sinto que sou apressada e preciso ganhar esta aposta. Há um milhão de eus que me empurram de volta ao portão, mas esse eu que é de fibra e matéria viva é mais forte que os outros, então sem conhecer os dentes eu sorrio. Sorrio e sinto que uma coisa doce vem à boca, é a quentura de fora com o frio de dentro, o frio da saliva aquosa - agora quase seca porque o vento bate. Engulo uma quantidade enorme de ar e percebo que sou o balão que flutua.
Ai, queria eu imaginar o que é o rosa, o amarelo, o laranja, mamãe disse que são cores de quentura. Minhas pernas queimam, eu inteira queimo, mas queimo em fogo brando porque é fogo de satisfação. Estremeço em cada parte pois sei que estou levitando, eu que apenas percebi o pássaro com as pontas dos dedos. Tenho asas agora, tenho plumas e penas e asas, sou toda levitação.
De volta ao solo, no mesmo percurso, um pouco já fatigada (porém sorridente), ensaio o próximo passo - só que alguém me puxa pelo braço: são as mãos de mamãe. Reconheço, por fim, que está acabando mais uma tarde de verão.
(cigarra canta)
Hora de entrar em casa.