terça-feira, 31 de agosto de 2010

Anonimato

Tirou da bolsa um cigarro e logo depois um isqueiro. Acendeu o cigarro e colocou-o na boca, preenchida pelo batom escarlate de anteontem. Saíra de casa determinadíssima, porém um tanto cansada. Desde pequena cansava-se com facilidade, diziam-na que já nascera velha. Às vezes, nem uma gente muito velha tinha o cansaço plúmbeo dela, que andava arrasatada feito a fumaça que agora se desvencilhava dos lábios.
Sua bolsa preta era um pouco antiga. Estava gasta, sem um dos fechos, entreaberta. No corpo, um roto vestido preto de bolinhas brancas, velado em parte por um cardigã preto acinzentado de poeira. Sua pele também era acinzentada: talvez fosse o cigarro, talvez a velhice. Se agora estava sentada à beira de uma encosta é porque descobrira o tempo. Quantas voltas de ponteiro ela não havia contabilizado em suas andanças, ela agora ali esquecida, quase sólida como o cimento que revestia o piso.
O cigarro estava acabando, ele era sua ampulheta. Levantou-se silenciosamente, caminhou um pouco pela beirada, fez-se equilibrista enquanto o vento levantava um pouco o vestido, revelando pernas de mármore e forro descosturado. Ai, a moça cinza, muito antes tão branca, agora uma estátua salina quase petrificada. E pétrea, linda e misteriosa ela degusta o fim de seu cigarro, cuja fumaça negra enamora os brônquios.
Bateu um vento que a levou, leve feito papel. Falta dela não sentiram, por seu nome não chamaram. Sinto um cheiro de naftalina, vou para onde ela estava. Não acendo cigarro, respiro ar puro.
Aterraram aquilo tudo, no lugar fizeram uma praça. Nela há cimento das minhas próprias andanças.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Nota!

Certamente Janeiro é  o mês mais produtivo para mim. Aqui nessa terra costuma fazer calor, mas eu me coloco de uma maneira tal que ele até se esquece de passar por mim. Sim, sinto que esquenta, às vezes mais do que deveria. Só que a essa época do ano ainda não existo, porque vou brotar na estação vindoura. Deserto, sou teu oásis, brinda minha chegada com tempestades de areia. Estarei aqui em breve, dormirás embalado por histórias a partir de então.

Dorme e perde as pernas no sonho

Resolvi sair e caminhar um pouco. A tarde de chumbo não é mais densa que a poeira acumulada nas minhas juntas. Alguém disse que ficar em casa demais faria com que eu envelhecesse, e isso me tornaria obsoleto ao meu tempo.
Abri a janela, já meio emperrada, e de súbito um vento fortíssimo invadiu tudo, muito pleno e vigoroso. Acho que nunca respirei tanto; senti minhas narinas dilatadas, frescas, com aroma de nada, que é o céu perto do vigésimo andar do edifício onde me encontro, nesse apartamento isolado. O ar limpou meus pensamentos, fui vasculhado por moléculas que não reconheço e que a essa altura já teriam realizado trocas gasosas muito complexas. Na hora em que eu respirava freneticamente ainda de olhos fechados, estático, me veio à cabeça pular a janela, verificar se a brisa me levaria adiante, em um voo de pássaro sem rumo. Senti que em mim rangia uma sinfonia magnânima, atestando que estava em espaço e tempo determinados. (A sinfonia faz tum, tuc, tum, tu tu, tum, tum tuc, tuc.) Respirei sem esforço, os movimentos de inspiração e expiração ficaram perfeitamente involuntários, nesse momento eu poderia flutuar como uma bolha transparente e límpida, redutível a um simples estouro. Se sangue tinha, agora o ar preenchia veias, artérias e capilares, e eu me sentia anestesiado, leve; se meu destino fosse cair de um precipício eu cairia muito feliz. Tentei abrir os olhos, quase consegui, no entanto a única coisa que fiz foi subir no parapeito da janela, um pouco trôpego, ainda coberto por muito vento. Com um tato paupérrimo investiguei a região, mas meu pé se perdeu e o tufão me levou, levou para longe, onde sinto frio na barriga em uma queda vertiginosa.
Triiim! Abro meus olhos, o frio na barriga ainda me acompanha um pouco (sensação gelada de montanha russa), porém percebo estar sentado no leito. Tenho pernas, sangue, acredito que as trocas gasosas estão em perfeita harmonia. Examino o quarto, a janela está fechada, vedada por trincos e cortina. Levanto, chego perto, não ouso abrir. Vou me arrumar e sair de casa. Vida lá fora.