terça-feira, 4 de maio de 2010

Reiterando

Eu queria que o oco das coisas fosse música. Simples assim: p o e s i a.

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O Rascunho das Metrópoles

Uma hora da tarde. O ônibus estava parado no engarrafamento, e o estudante pretendia chegar em casa. Todos os dias muita gente pretende chegar em casa, mas não sabe se realmente retornará. Quando saem, de manhã cedo, rezam para seus deuses em busca de alguma proteção. A cidade é a selva perigosa, o delírio inventivo, cimento, asfato e tijolo, a asfixia. Quem não se sente asfixiado com a fumaça tragada e expelida pelos carburadores insandecidos?
Pois o estudante estava agora asfixiado. Os automóveis ao lado do ônibus produziam nuvens negras, e as janelas do coletivo imediatamente se fechavam, na tentativa de preservar o ar que ali se respirava. Nos acostamentos da via expressa, vendedores ambulantes estavam inertes a todo o caos provocado pelo barulho das buzinas, pela fumaça venenosa, pelas velocidades sempre crescentes. Eles aproveitavam o engarrafamento para vender seus produtos, ou pelo menos tentar. As janelas, quase invariavelmente fechadas, abriam-se vez ou outra para trocar refrigerantes, águas e biscoitinhos por algumas moedas.
Mais à frente, uma equipe da administração pública era vista como a causa do engarrafamento. Homens recapiavam a estrada, sob sol a pino, soltando matéria sintética preta e imprensando-a com rolo mecânico. O motorista do ônibus, já impaciente, tentava em vão algumas manobras para escapar do congestionamento. Tem-se muita pressa nos dias de hoje, uma pressa descomedida. O relógio é o inimigo fatal, pois se fulano não estiver às três no trabalho, está na rua. Todos nós passamos por tantas ruas em nossa vida...
O estudante estava um pouco impaciente, olhava para o relógio e pela janela do ônibus. Sua visão não era muito agradável. Barracos, casas que mais pareciam escombros, animais magros pastando no lixo, catadores fazendo o mesmo, e no gramado cercado, crianças uniformizadas jogavam futebol. Ah, pelo menos isso, pensou o estudante. Pelo menos alguma esperança tornava-se visível naquele mar de regularidades que se espalhava pelo acostamento: o mar de tijolos dos barracos compunham a favela.
No acostamento, um funcionário da obra de asfaltamento da via fumava um cigarro. Parecia desdenhar da utilidade de tudo aquilo, como quem dissesse "Daqui a pouco fica tudo esburacado de novo". Enquanto fumava, dois meninos pularam a barreira do acostamento, vindos da favela. O estudante pensou que isso era um absurdo, pois se não fosse a obra aqueles jovens estariam em apuros. Deteve-se em perceber que os dois meninos foram até o homem, cada um com um cigarro, pedir para que ele acendesse os seus. O homem, de prontidão, o fez. Munidos de um papel enrolado, "sabe-se lá com o quê dentro", pensou o estudante, os meninos aproximaram-se do ônibus e, em tom de escárnio, disseram: "Aí só tem playboy, esse é o ônibus dos playboy, mané!".
Gelado e quase imóvel, o estudante ficou bastante espantado com aquilo. Além da fala, os meninos deram batidas na lateral do ônibus, na tentativa de acordar um rapaz que cochilava encostado ao vidro, e falavam "Dorme não, playboy, dorme não!". O estudante não virou para trás a fim de conferir a reação do rapaz. Com a mão no fecho da janela, pensou em fechá-la, mas em sua cabeça passaram milhões de coisas: e se jogassem uma pedra ou cuspissem?
O ônibus finalmente andou mais um pouco, e saiu da zona de asfaltamento. Os meninos, agora mais para trás, pulavam a barreira do acostamento de volta à favela, e pareciam estar satisfeitos com o que fizeram. O estudante recuperara-se do "susto" (não sabia, ainda, a reação do rapaz do ônibus), alertado pelo odor que misturava esterco e papel queimado. A favela tornava-se mais ampla, porém mais distante. A linha do trem passava por ela, dura e cortante, mas ao lado dela, a carrocinha do catador de papel fazia seu trabalho diário.
No caminho, o estudante ficou pensando o que motivara aqueles meninos a fazerem o que fizeram. Não assaltaram, não agrediram fisicamente, mas atacaram, proferiram palavras com raiva e pungência. Nós, passageiros daquele ônibus, éramos alvos daquele sentimento. Nós, passageiros daquele ônibus, estávamos deixando de lado aquele cartaz, para cruzar uma ponte, um túnel e chegar à nossa linda cidade. A cidade só é linda de um lado, se você virá-la do outro ela é feia, feita de tijolo, barro, tapumes e zinco. Na via por onde o ônibus passara, ladeada de favelas, tentavam cobrir com acrílico e ferro a falta de planejamento, ou a tentativa de muitas pessoas de não ficarem desabrigadas e morarem perto do trabalho. Sim, porque se o fulano perder o trem e chegar atrasado, está na rua.
A caminho de casa, o estudante percebera que, no momento do "ataque" dos meninos na via expressa, aquilo incomodara mais do que o congestionamento e o cansaço da viagem. Incomodara porque, naquele instante, os passageiros do ônibus eram a materialização do sistema, a origem das desigualdades. Nós nos tornamos patrões, e eles sentiam-se nossos operários.
Na porta de casa, o estudante concentrou-se em outros pensamentos: "Tenho uma agenda a cumprir, preciso fazer tal coisa da faculdade para amanhã, é super importante". E cruzou o portão do prédio, que já fora lavado pela manhã.
O estudante era eu.

Quando o caco de vidro torna-se o maior dos cristais

X. saiu de casa às cinco. Tinha que estar no trabalho às sete. Só que X. não sabia que aquele dia seria mágico. O ônibus estava no ponto, o ar cheirava a café e biscoitos, e seu estômago, como sempre, vazio. Vazios eram também os pensamentos de X.: ela só sabia que precisava de um dinheiro no fim do mês porque as crianças já tinham aprendido a dizer "fome" e pediam leite e roupas. Era isso o que se podia fazer com o salário mínimo daquele país.
X. vivia como dava, honestamente. A honestidade era sua maior virtude, pensava encostada ao vidro do ônibus, enquanto os olhos rodavam como se quisessem absorver a imagem do café com pão assim como sua língua fazia com o alimento sorvido. Era sôfrega, mas se tivesse algumas moedas... olhou para as mãos e não viu nenhuma. Abriu a bolsa, vasculhou (embora estivesse vazia), nada. Desceu do ônibus, sem entender porque o fizera. Na cabeça, café com pão. Caminhou em direção à casa, meio hipnotizada, distante.
Abriu a porta, e o susto fez o menino mais velho largar a colcha. Se assustara, porque a essa hora a mãe deveria estar no meio do caminho.
- Coloca uma roupa, menino, e acorde os outros.
O mais velho, imbuído de sua infinita responsabilidade, fez orgulhosamente o papel da mãe, nos dias em que essa ficava sem trabalho. Os outros, sonolentos, esfregavam os olhos secos pelo frio da madrugada. Já (quase) prontos, passaram pela inspeção da mãe: "A gente é pobre mas é honesto", frisou X. E saíram de casa, respirando ar novo. A conta de luz não estava mais sobre o móvel da sala.
Andaram pouco, e logo estavam na estação de ônibus. Aquele já partira há muito, mas o que importava? "Café com pão", dizia X. a si mesma em seu interior magro. Ao chegarem em frente à banquinha, a vendedora disparou:
- É com manteiga, queijo ou presunto, freguesa? O café é puro, pingadinho, dois dedos de açúcar ou adoçante?
Isso atravessou X. como a última esperança de sua vida. Aquela refeição seria abençoada. Pegou o dinheiro de dentro da bolsa, majestosa, e entregou à vendedora: "Hoje podemos tudo!". Sorriu para si mesma, a vendedora em posse do dinheiro fazendo os cálculos. Que fabuloso, cada um comeria seu pão, com o recheio predileto, e teria direito a um copo grande de café com leite, pingadinho, dois dedos de açúcar. Pronto, virara festa. Farelos, gotinhas, línguas e sabores. As crianças acordaram definitivamente.
O término era a despedida. Mas o estômago estava devidamente forrado. X. pensou, "Quanta imprudência! Quem agora pagaria aquela bendita luz?". Nada mais importava. As crianças sorriam, e já começavam uma quase corrida de pega-pega. "O que importa?", pensou consigo mesma. "Essa felicidade nossa, conquistada sem o bate-estaca do dia-a-dia, ah, essa nem o escuro oprime. Nós temos vida, temos a nós mesmos".
Saíram dali, não se sabe para onde. X. andava e ria sozinha, sandália rala arrasatando pelo chão. Estômago forrado, coração aquecido, libertação. Aquele dia havia sido, inegavelmente, mágico.